TEMPO | Natércia Teixeira
Não conheço nada tão voluntarioso como o tempo.
Está à nossa disposição, dá-nos liberdade para o usar como entendemos…com quem entendemos.
Funciona como um contrato que nos acompanha tacitamente pela vida, com cláusulasa cumprir e “letras pequeninas” a dar conta aos distraídos que vem com prazo de validade.
O tempo, faz de nós o que fazemos com ele.
Podemos escolher tê-lo como aliado ou como carrasco.
Pessoalmente aprecio quem não se sente refém dele, quem não o torna num muro de lamentações e quem consegue faze-lo render muito para além das rugas.
Este episódio foi-me contado:
Um médico, depois de observar um paciente, um Senhor já de alguma idade e antes de prescrever a medicação que seria a finalidade da consulta,interrompeu o atendimento devido a de uma chamada que considerou prioritária.
O homem, visivelmente inquieto, ia perguntando ao médico por gestos e meias palavras se demorava muito a dar-lhe a receita porqueprecisava ir embora…e olhava ansioso o relógio que trazia no pulso.
A situação prolongou-se por alguns minutosaté que o Senhor comunicou ao médico que teria de ir embora ou perderia a hora da visita.
Pressionado e agastado o médico interrompeu o telefonema e questionouo paciente:
“ Mas qual é a pressa Sr. João?!
Chega tarde à visita…ou nem vai… qual é o problema?
O Senhor sabe que a sua mulher tem alzheimer…ela não se recorda de nada, nem se lembra
de si!”
O homem já de pé encolheu os ombros e encarou o médico:
” É verdade Sr. Doutor….ela não se lembra…mas lembro-me eu!”
Consta que o médico suspendeua chamada e ficou em silêncio a digerir aquela resposta enquantoelaborava a prescrição e que no mesmo instante que a entregou ao paciente, ele seimpulsionou para a porta do consultório, com uma jovialidade que terá feito supor a quem assistiu àquele arroubo de energia, que a consulta daquele clínico valeria bem cada minuto de espera.
Muitas podem ser as considerações a tecer relativamente à situação em si, pouco me parece tão claro como a importância que alguns momentos podem ter.
A frase de Saint-Exupéry:
“Foi o tempo que dedicaste à tua rosa, que fez a tua rosa tão importante” ecoou-me na mente quando escutei este relato.
A verdadeira recompensa pelo que damos de nós, não está no reconhecimento dos outros, está no que guardamos dessas ações para nós mesmos.
Aquele homem, não consigo imaginar quão sofrido, não espera qualquer retorno pelo que fez ou pelo que dá…dá, porque como muito bem disse não se esqueceu.
Provavelmente não esqueceu o tempo em que partilhou sorrisos, o tempo que passou a escrever cartas, o tempo em que dançou, as músicas que escutou, o vinho com que brindou.
Não esqueceu as noites de insónia em que teve quem o ouvisse, os momentos em que precisou de um medicamento e alguém lho trouxe, os dias em que teve um miminho qualquer em cima da mesa para lhe aquecer a alma.
Provavelmente…percebeu cedo que a mais simples das cláusulas do tempo é despende-lo no que realmente importa e que as “letras pequenininhas” do contrato são os grãos de areia na ampulheta do tempo…vão inexoravelmente um dia, ficar todos de um só lado.
Acredito que as memórias são presentes que o tempo nos deixa para que os pedacinhos de vida que partilhamos com aqueles que amamos se eternizem.
Julgo serem elas, que quando chegamos aos nossos derradeiros “grãos de areia” nos aconchegarão e farão companhia…penso que nesse ponto, não ter o que lembrar seja o preço das clausulas mal cumpridas.
Isso e perceber que se nos escapou o valor do que nos desenha um sorriso e nos anima a correr para um lugar qualquer.
Natércia Teixeira