A DIFERENÇA | Jaime Froufe Andrade
A diferença
A Redacção vivia dias empolgantes, mas também ansiosos. Trabalhava-se com afinco e entusiasmo, na preparação de um novo jornal. Em tempos de ditadura, o velho "Diário do Norte" , vespertino do Porto, acabara a sua publicação. Defensor patético do regime, tornara-se da cor da cinza, deixando de interessar os próprios leitores situacionistas. Em sua substituição, preparava-se um jornal novo, a expensas de um banco da Invicta.
Para director foi convidado o Dr. Alberto Uva, um algarvio que fez carreira de professor na capital do Norte. Era homem afável, um gentleman de escrita elegante. A Redacção
que dirigiu ancorava em jornalistas de reconhecida competência. Era o caso do
Rodrigues Alves que assumiu a chefia, do Abílio Valle Fernandes, do vibrátil Arsénio
Mota a quem se deve a belíssima tradução do "Confesso que vivi" de Pablo Neruda.
Alguns jornalistas do extinto "Diário do Norte" foram também repescados. Foi o caso do Devesas, do Sarrasqueiro ocupado com a Secretaria, e de um ou outro humilde
plumitivo. Numa mescla bem urdida, o corpo redactorial integrava ainda jovens
universitários, homens e mulheres, vindos directamente da Faculdade de Letras do
Porto.
Acima de todos, até do próprio director, pairava a figura de Metzner Leone. Homem de
extrema direita, dele se dizia, não sei se com verdade ou não, ter sido espião duplo
durante a segunda guerra mundial. Brilhante na escrita, brutal no trato, conhecedor
profundo do jornalismo, que cultivou durante anos no Brasil, ditador por vocação,
trabalhador eficiente e deficiente no carácter, assim ele era. Inspirava, simultaneamente,
admiração e medo. Foi com ele que me defrontei, no dia em que decidi tornar-me
jornalista.
Entrei cedo nas instalações do jornal, localizadas na Rua Álvares Cabral, um pouco a baixo da antiga sede do velhinho Salgueiros, simpático clube de bairro da cidade. Disse ao
porteiro ao que ia. Momentos depois tinha Metzner Leone pela frente. Alto, grisalho,
carrancudo, trovejou: «Não há vagas, a Redacção está completa. Mas se quiseres há
uma hipótese na Revisão». Com a guerra colonial ainda à flor da pele, fiquei em brasa.
Decidi-me por um golpe-de-mão. Imperioso era apanhar o inimigo de surpresa.
Com falsa modéstia aceitei a proposta para revisor. Diante de mim tinha agora um texto
enxameado de gralhas para detectar e corrigir. Com espanto, uma jovem jornalista
encarregada de vigiar a prova, viu-me pôr de lado o texto das gralhas e sobraçar uma
resma de folhas A4, os chamados linguados, ou laudas, na gíria do jornalismo.
Inebriado pela adrenalina, lancei-me numa escrita desenfreada, num ataque feroz à
forma como fora recebido. Perorei também sobre os maus caminhos que o País teimava
em trilhar e das pessoas que, colocadas em lugares-chave, ajudavam a manter vivo todo
esse desvario...
Também deixei conselhos: que nunca mais ali voltem a impedir alguém de fazer provas
para jornalista sob o argumento de o quadro estar completo. E se aparecer um
predestinado, conforme era o meu caso? Terminei a demolição da coisa de forma
surpreendente: anunciei a minha disponibilidade para integrar a Redacção. Ao fim de
dez minutos raivosos, levantei-me, entreguei as folhas à estupefacta jornalista e saí de
queixo levantado.
Ao entrar em casa, deram-me a notícia chegada pelo telefone: «Um senhor com voz de
importante mandou-te estar às oito horas da manhã, no "Diário do Norte" ...» O golpe- de-mão, fulminante como eles se querem, tinha resultado. Afinal sempre iria fazer
provas para jornalista.
Passado o primeiro entusiasmo, uma dúvida: não seria aquilo um ajuste de contas? Uma
oportunidade para uma troca de palavras azedas testemunhadas por algum informador
da Pide? Naquele tempo era assim que se pensava. Mas fui...
«Anda comigo». Senti-me como rês a caminho do matadouro. Levou-me para a
Redacção, àquela hora repleta. Os jornais vespertinos começavam a laborar muito cedo.
Começou por dizer. «Ouçam o que este chico esperto nos escreveu». E pôs-se a ler o
meu texto, enfatizando as partes mais gravosas. No final, deu-me razão naquele ponto
em que eu entendia nunca se dever negar provas a candidatos a jornalistas. Depois
passou ao ataque, informando-me que me iria sujeitar a três testes. O objectivo não o
escondeu: «Como não gosto de chicos espertos quero ter o gozo de te ver falhar e pôr-te
no olho da rua...»
Os testes eram provas práticas: uma notícia que fosse "cacha" com pouco tempo, diga-se, para a descobrir e redigir; uma entrevista também com apenas uma manhã para a
realizar e escrever, e a terminar, uma crónica em quinze minutos. A minha necessidade
de vencer a soberba daquele brilhante e intratável senhor revelou-se superior às
dificuldades das provas. Na guerra dizia-se que a sorte protege os audazes. Também
dela beneficiei. Diria que, pela primeira vez, Metzner Leone me olhou a sério ao dizer-me em tom solene: «És dos nossos. Ficas cá».
Passei então a integrar a Redacção e a dizer aos amigos, com vaidade, que era jornalista.
Fiquei na secção chefiada pelo Abílio Valle Fernandes que, pacientemente, me
ministrou preciosos ensinamentos sobre o ofício. Entretanto, íamos fazendo o chamado
jornal-piloto de que eram impressos reduzido número de exemplares. E que fantásticos
eles eram! Como essas edições-piloto não vinham para a rua, não passavam pela
censura. Deslumbrados, sobretudo as e os jovens jornalistas, escreviam à vontade sobre
o triste fadário de um país atrasado e acabrunhado.
Durou pouco esse meu primeiro contacto com a profissão. De forma inesperada,
confrontámo-nos uma manhã com um comunicado da administração a informar que se
encontrava suspenso o projecto do novo jornal. Machadada terrível na vida das pessoas
que, iludidas por melhores remunerações, se despediram dos antigos empregos. Nessas
horas de frustração e até desespero, lembro-me do conselho do Arsénio Mota, o tal do
"Confesso que vivi": «Foge disto. És novo, arranja outra profissão. O jornalismo é uma má amante», conselho que afinal não segui. Entretanto, teria de dizer aos amigos, agora
sem vaidade, que já não era jornalista.
Exumei esta história de passado distante no dia do nascimento do "Baião Canal Jornal".
Não foi por acaso. Quis estabelecer um paralelo de um Portugal de dois tempos.
Lembrar aos outros e a mim próprio de como são incomparáveis essas duas eras.
Valorizar a diferença que existe entre ditadura e obscurantismo e liberdade de
pensamento e de expressão.
Numa época em que forças de extrema direita se movimentam à luz do dia, a valorização e a preservação dessa diferença essencial é, seguramente, meta para este
novo meio de comunicação que hoje nasce.
Jaime Froufe Andrade ( Jornalista, escritor )
O autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico