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BAIÃO CANAL - Jornal

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SOCIEDADE E CULTURA | Histórias avulso | Jaime Froufe Andrade

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(A pandemia pôs-nos à espera do futuro. Parados pelo vírus, talvez seja tempo para percebermos o que deixámos para trás. É essa a proposta de Histórias avulso)

O marçano e a freira

Marcelino viu a cidade pela primeira vez aos doze anos. Na estação de S. Bento, no Porto, tinha o irmão mais velho à espera para o levar àquele que iria ser o seu patrão. Era segunda-feira. A tarde ia adiantada, mas, ainda assim, dia de trabalho. Puseram-se a caminho em passo apressado. Entretanto, a Torre dos Clérigos fez Marcelino parar de espanto. Vamos, o senhor Silva está à tua espera…

Minutos depois, chegava à mercearia onde iria trabalhar como marçano. Domingo à tarde venho buscar-te para darmos uma volta. Ao ver o irmão desaparecer, Marcelino ficou inquieto. Aos doze anos estava entregue a si próprio. 

Deixara para trás a vida tal como sempre a conhecera. E tudo aconteceu de repente. Na sexta, estivera na escola a receber o diploma da quarta classe, sábado juntara-se ao rapazio para mais uma folgança. No domingo, passara a tarde na festa da sua aldeia, de olho posto na Bina. Segunda-feira estava noutro mundo.

Adeus aldeia de Cabriz, adeus rio Távora, adeus casa paterna, adeus Bina. Apesar de tudo, Marcelino não se queixa. O patrão trata-o bem, com humanidade. E até permite convivência com os seus filhos. O senhor Silva fora estudante. É um merceeiro diferente. Lê livros e usa o cabelo comprido como os escritores. Nas horas mortas da mercearia, dá-lhe ensinamentos sobre a vida, o País, o mundo… Incentiva-o a ler o jornal.

Agora Marcelino entende bem o rasgo do seu pai, em obrigá-lo a ir à escola. Não saber ler é uma desgraça, dizia-lhe. Mestre-pedreiro, analfabeto, mas pai sábio. Se não tivesse aprendido a ler e a escrever não poderia ir a casa dos fregueses saber as ordens. E isso era o que ele mais gostava de fazer. Sempre arejava, saía de trás do balcão.

Os meses foram passando e o Inverno chegou. Gélida aquela manhã de Janeiro, mas a frios rigorosos estava ele habituado. De mãos enfiadas nos bolsos da bata do ofício, Marcelino vai ligeiro saber as ordens a uma residência de freiras. A tua mãe deve ter muitas saudades tuas, disse-lhe, certa vez, a irmã que o costuma atender. Marcelino esclarece-a: Ela morreu quando eu tinha três anos. A freira entristece, chega a puxar do lenço para enxugar os olhos. Despediram-se, ela a fazer-lhe uma festa no cabelo. A cena aproximou-os.

Durante o caminho, vai agora a pensar nessa espécie de segunda mãe. Tão boa, tão piedosa, por certo a Santa Maria Madalena, a padroeira de Cabriz, anda já de olho nela. Também ele andara de olho posto na Bina, mas por outros motivos. A Senhora dos Cabriz vai de certeza puxá-la para santa. 

Escreve aí, Marcelino, para não te esqueceres: meio quilo de cevada… 

Mas as ordens são subitamente interrompidas: um pardal cai inanimado aos pés de Marcelino. Foi o frio que o matou, pensa. Pressurosa, a freira apanha a pequena ave, mete-a entre as mãos, sopra-lhe bafo quente. 

Marcelino * observa-a maravilhado. Chega a pensar em milagre ao ver o pardal agitar-se, a voltar à vida, a bater as asas. Foi então que, em lance rápido, fulminante, a freira enfiou o pardal pelas fauces do tareco, um gatarrão capado, que também ali tinha residência.

Marcelino, de nome completo Marcelino Rodrigues Andrade, era o senhor meu pai. O mestre-pedreiro, meu avô, chamava-se Manuel de Jesus Andrade.