OS TEMP(L)OS DA GENTE ARREPENDIDA | Paulo Esperança
Estamos em Abril! O mês de todos os sonhos, o mês de todas as esperanças, o mês em que o futuro era agora!
Abril fez-nos descobrir que era possível construir a liberdade sem muros nem ameias, que poderia haver um país em que só há liberdade a sério quando houver paz, pão, habitação,saúde,educação.
Esta caminhada teve muita gente boa, generosa, intrépida lutadora contra as arbitrariedades de um regime feio, obscuro e ameaçante.
Alguma dessa gente, na bondade da sua juventude andou pela calada da noite a distribuir “panflos” contra o fascismo e a guerra colonial. Arrostaram com as agruras da Pide, da repressão, do cerceamento da liberdade de expressão, enfim da negação da condição humana.
Alguma dessa gente habitava o “Piolho” dissertando sobre a virtudes dos amanhãs que cantam.
Alguma dessa gente andou empilhada na chaimite de Salgueiro Maia, calcorreou as rua de Lisboa na caça aos “pides”.
Alguma dessa gente ajudou a construir o “prec”. Esteve nas barricadas contra o “28 de Setembro” e o “11 de Março”. Andou pelo Palácio de Cristal em 25 de Janeiro de 1975 quando o CDS realizava o seu Congresso.
Alguma dessa gente ocupou casas vazias para que os mais desfavorecidos tivessem habitação condigna.
Alguma dessa gente esteve no Porto e em Lisboa, no Consulado e na Embaixada de Espanha mostrando o seu desespero e a sua repulsa pelo assassínio de cinco militantes antifranquistas em 27 de Setembro de 1975, em Espanha.
Alguma dessa gente escreveu em jornais da época de forma a transmitir ao povo que esse povo tinha voz.
Alguma dessa gente escreveu e lutou para pôr em marcha o sonho de um 25 de Abril do Povo.
Mas os tempos mudam! É verdade que não é fácil resistir à ressaca das derrotas e ao descambar de todos os projectos que inundavam o imaginário de um mundo novo.
Mas também é verdade que é muito difícil explicar o arrependimento.
Até aceitaria que essa gente viesse dizer: ok, eu era jovem, percebia pouco de política, queria mudar o mundo...mas percebi que estava enganado. Por isso optei por outra linha!
Mas não! A desfaçatez faz com que muita dessa gente afirme exactamente o contrário do que outroura defendeu como se as sua posições actuais sempre tivessem sido o pensamento nuclear de toda a sua vida.
O neo-liberalismo, o racismo e a xenofobia encapotados, a dúvida pretensamente metódica sobre qualquer causa progressista incorporam o seu pensamento(?) erigindo-os como arautos de uma chamada “nova direita” que tem tão de velha como a que Freitas do Amaral, inventou em 1974.
Mancomunados com obscuros interesses editoriais propagam teses defensoras do capitalismo mais bacoco como se estivessem a descobrir a pólvora.
Serventuários de quem lhe paga principescamente renegam o seu passado tentando passar pelo intervalo das gotas da chuva sem se molharem.
Não é preciso observar atentamente nem consultar as páginas dos Governos sobre quem quer ministrar educação aos cidadãos deste país para se perceber do que falo.
Expressamente destilam aberrações transforamadas em colunas de opinião que a vida comprova terem estado bem resguardadas para ajustes de contas futuras .
Andei com muita dessa gente nas guerras que eram necessárias. Tenho pena do futuro que escolheram!
Desculpem, do que fiz ...de nada me arrependo. Faria algumas coisas de forma diferente? Claro que sim. Mas ninguém pode adiantar ou atrasar a historia.
Por isso aqui estou para o que der e vier!
Fiquem com esta:"Não me arrependo de nada do que fiz. Mais: eu sou aquilo que fiz. Embora com reservas acreditava o suficiente no que estava a fazer, e isso é que fica. Quando as pessoas param, há como que um pacto implícito com o inimigo, tanto no campo político, como no campo estético e cultural. E, por vezes, o inimigo somos nós próprios, a nossa própria consciência e os álibis de que nos servimos para justificar a modorra e o abandono dos campos de luta", José Afonso.
E já agora, também com esta:
Do que um homem é capaz
As coisas que ele faz
Para chegar aonde quer
É capaz de dar a vida
Para levar de vencida
Uma razão de viver
A vida é como uma estrada
Que vai sendo traçada
Sem nunca arrepiar caminho
E quem pensa estar parado
Vai no sentido errado
A caminhar sozinho
Vejo gente cuja a vida
Vai sendo consumida
Por miragens de poder
Agarrados a alguns ossos
No meio dos destroços
Do que nunca vão fazer
Vão poluindo o percurso
Com as sobras do discurso
Que lhes serviu pr'abrir caminho
À custa das nossas utopias
Usurpam regalias
Para consumir sozinho
Com políticas concretas
Impões essas metas
Que nos entram casa dentro
Como a Trilateral
Com a treta liberal
E as virtudes do centro
No lugar da consciência
A lei da concorrência
Pisando tudo pelo caminho
Para castrar a juventude
Mascaram de virtude
O querer vencer sozinho
Ficam cínicos, brutais
Descendo cada vez mais
Para subir cada vez menos
Quanto mais o mal se expande
Mais acham que ser grande
É lixar os mais pequenos
Quem escolhe ser assim
Quando chegar ao fim
Vai ver que errou o seu caminho
Quando a vida é hipotecada
No fim não sobra nada
E acaba-se sozinho
Mesmo sendo poderosos
Tão fracos e gulosos
Que precisam do poder
Mesmo havendo tanta gente
Para quem é indiferente
Passar a vida a morrer
Há princípios e valores
Há sonhos e há amores
Que sempre irão abrir caminho
E quem viver abraçado
À vida que há ao lado
Não vai morrer sozinho
E quem morrer abraçado
À vida que há ao lado
Não vai viver sozinho
José Mário Branco ( Do que um Homem é capaz, Álbum “Resistir é Vencer”, 2004)
Paulo Esperança, Abril 2021