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BAIÃO CANAL - Jornal

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OS PEQUENOS TAMBÉM SÃO GRANDES | Aníbal Styliano

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E tudo a memória guarda…

Ter ou não ter sapatos era indiferente. Tudo começava numa bola que até podia ser resultado de cooperativa instantânea. Depois aperfeiçoava-se com insistência e talento. Aos domingos, dia de jogos, criando rotinas únicas, hoje subvertidas pela publicidade e dependência económica dos clubes que garantem transmissões televisivas como negócio imparável de milhões.

O caminho é para a frente e assim se começa a jogar em clubes. Sempre ao domingo. Havia um tempo de trabalho, de rotinas,de obrigações e depois vinha o outro tempo, o especial, o da utopia sem prazos, o tempo do ócio e do jogo das nossas vidas. Nunca outra atividade tinha conseguido estabelecer essa ligação tão completa entre jogadores, clube e bola. E claro os adeptos, onde os mais jovens aprendiam o que significavam aqueles emblemas, aquelas cores e até o o hino do clube, ouvido antes dos jogos, com palavras simbólicas que aumentavam o ritmo cardíaco. Era inexplicável porque sentido. Os dirigentes mais antigos, eram presença notada, admirada, reconhecida. O diálogo praticava-se numa linguagem familiar e num tratamento de afeto. Por vezes, os mais idosos, contavam episódios de quando eram crianças (o que para nós era difícil de imaginar porque ainda não sabíamos as regras do tempo) e a atmosfera à nossa volta mudava completamente. Mensagem aprendida.

Assim se fundiram memórias que nos aproximavam e nos tornavam uma grande família. Depois, conhecemos jogos grandes, com os heróis das revistas antigas (Ídolos, Sport e outras publicações) e vestíamos a pele da personagem que mais admirávamos: durante a minha infância fui Hernâni Ferreira da Silva. As minhas arrancadas sem perder o controlo da bola, com passes precisos, com remates fantásticos e penáltis a enganar o guarda-redes, davam-me minutos em que a personagem estava tão ligada à realidade que só no fim do jogo, se voltava do sonho à realidade. Conseguíamos dividir o tempo às fatias e sobravam prolongamentos para outros jogo e brincadeiras ou ida sigilosa à fruta para partilha secreta.

Mas a bola estava sempre no imaginário. Quando entravamos na sede do clube, local mítico, com um ambiente especial, porque ali estava a alma do clube, pertencíamos a esse espaço. Só lá íamos acompanhados pela família ou quando já jogadores assinavam pelo clube. Essa sensação, mesmo como profissional, nunca se reduziu, pelo contrário. O tempo avança por essas memórias, pelas imagens dos amigos e dos ambientes que a urbanização, sem planos integrados, destruiu sem cuidados, para haver ruas sem saída, como espaço de preparação para se poder entrar para dentro das quatro linhas, em estádios sonhados.

Por vezes, quer em comentários de programas de televisão, em fóruns ou sessões formais, no reencontro com antigos companheiros de meninice, além dos nomes que voltavam a ser diminutivos ou alcunhas (o linguiça, o jaburu, o orelhas, o granjola…) continuei sempre como Hernâni, quando afinal sou Aníbal. Tenho saudades com esperança de que os mais jovens de hoje mantenham essa oportunidade de fazer amizades indestrutíveis, sempre presentes para ajudar a resolver qualquer problema, de forma instantânea, que tudo supera. Hoje ouvimos muito falar em Bullying e quando conversocom mais jovens conto-lhes que no tempo em que era miúdo, não conhecíamos essa palavra, embora por vezes alguns mais velhos nos tentavam amedrontar. Nessa altura, defendíamos em equipa. Quando surgiam zangas, quem agarrasse o outro e o conseguisse prender, bastava responder à pergunta decisiva: “rendes-te?”. E o outro dizia: “Rendo-me”. Com um abraço final tudo voltava a ser como sempre. Os mais frágeis eram sempre mais protegidos. Eramos uma família construída na rua e sempre com uma bola debaixo do braço. Ainda hoje, em reencontros fugazes, usamos os apelidos e as saudações no código inesquecível. E tudo começou no primeiro pontapé na bola!

 

Aníbal Styliano (Professor e comentador)