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BAIÃO CANAL - Jornal

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Natércia Teixeira | "…E uma vontade de rir..."

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“…E uma vontade de rir nasce do fundo do ser.
E uma vontade de ir, correr o mundo e partir,
a vida é sempre a perder…”
In “Homem do Leme”

O silencio fazia adivinhar a madrugada.
Estender mecanicamente o braço para o telemóvel pousado na mesa de cabeceira era
o próximo passo.
3h21m
Resignei-me…longe iam os tempos em que as minhas noites eram de um só
sono…parece que com o avançar da idade precisamos de dormir menos…um
contrassenso, afinal quando somos jovens é que precisamos de estar mais tempo
despertos.
Cogitar sobre as incongruências da existência era o passaporte direto para uma noite
de insónia…tentei recordar-me de algum tema mais leve e mais monótono…nada que
envolvesse ovelhas, porque esse, de gasto, levar-me-ia para números de difícil
pronuncia, o que só serviria para me manter alerta.
Foquei-me na aura azulada das lâmpadas led do candeeiro acima de mim.
A luminosidade, apesar de ínfima e difusa, no breu da noite, parecia inundar-me o teto
do quarto que se assemelhava a uma abóbada celeste destacada pela estrela da
manhã.
Lembrei-me do desejo que tinha, quando ainda criança, de possuir um telescópio…do
fascínio que a imensidão do firmamento me provocava…também queria um fato de

mergulho para ver o fundo dos oceanos…e uns patins…acabei por não concretizar
nenhum dos desejos.
Suspirei…muito mais desapontada com as distrações que me mantinham acordada,
que pela frustração dos meus sonhos juvenis.
Devia voltar às lâmpadas convencionais…a claridade distraia-me e aquele bonito tom
azulado…também. Relembrava-me de olhares que perdera.
Vieram-me à memoria os meus saudosos huskys…e inesperadamente, também o
malogrado Afonso.
Passaram cinco, seis anos desde a partida do Afonso.
O Afonso decidiu um dia, que queria partir e partiu.
Ninguém percebeu os motivos.
Provavelmente em vida, também ninguém os viu.
O choque dessa escolha, embateu noutras perdas e marcou-me…tanto que volta e
meia me lembro com carinho e saudade do Afonso.
Com a lembrança, vinha a inquietação pela falta de respostas…mas se tivesse
oportunidade de lhe falar, não lhe pediria motivos…ficava-me pelo elogio aos seus
olhos azuis…e talvez lhe perguntasse se o peso da alma são mesmo os falados 21
gramas.
Imaginei um sorriso rasgado surgir num rosto, cujos olhos falavam. Conseguia
escutar-nos a rir… e cantávamos… com um entusiasmo contagiante…vindo do fundo
da alma.
“E UMA VONTADE DE RIR…”

Um ruido estridente e fora de contexto, impeliu-me a abrir os olhos…ao meu lado o
telemóvel dava-me conta que eram 7h30m…silenciei-o, mas ainda conseguia escutar
o meu riso e o próprio canto.
A aura azul no teto, desaparecera, o meu sorriso, não.
Sentia-me agradavelmente bem-disposta, para uma noite mal dormida e pensei para
mim que talvez o propósito dos sonhos seja tornar a vida suportável e o de alguns
momentos, mesmo que inusitados, o de nos fazer crer, que a vida não é…sempre a
perder.

Natércia Teixeira

Jaime Froufe Andrade | Histórias avulso

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(A pandemia pôs-nos à espera do futuro. Parados pelo vírus, talvez seja tempo para percebermos o que deixámos para trás. É essa a proposta de Histórias avulso)
 
 
Mais nada...

O tempo tudo leva. Só as recordações ficam. Hoje, numa caminhada pela zona da Circunvalação, fronteira de terra e mar entre Porto e Matosinhos, recordei-me de um domingo que me deixou marcas. Andava pelos 17 anos e o Verão tinha acabado. Mas o mar chamava-me. Obediente, fui ao seu encontro. Manhã cedo, estava já preparado para o primeiro mergulho. 


Não fui o primeiro a chegar à praia. Um grupo de homens preparava-se para um jogo de futebol. O número de jogadores era pernão. Eu vinha mesmo a calhar para acertar a conta. Foi assim que dei início a uma esforçada carreira de jogador de futebol de praia. Acabara de ingressar, a custo zero, no glorioso Sport Enrola na Areia. 


Outros clubes também ali jogavam. Era o caso do Inter da Circunvalação ou do Barça da Areosa, mas nenhum tinha, obviamente, a nossa classe. Talvez só o Maré Vaza Futebol Clube, por quem sentíamos justificado ciúme.


A disciplina e o trabalho são a base do sucesso de qualquer equipa. No Sport Enrola na Areia os dois quesitos abundavam. Era tudo levado muito a sério. A época ia do início do Outono ao fim da Primavera e os jogos, com a duração de duas horas, começavam pontualmente às nove da manhã. 


Em escala rotativa, quatro jogadores compareciam meia hora antes para retirar da areia o lixo trazido pelas marés, fazer as marcações do campo e montar as balizas. Era num anexo do Caninhas Verdes, restaurante popular situado junto a um canavial em frente à praia, onde a bola e as balizas ficavam guardadas.


Para mim, jogar no Sport Enrola na Areia tratava-se de assunto da máxima importância. O domingo demorava sempre a chegar, tal a ânsia de entrar em campo. Mesmo assim, não posso dizer que sentisse amor à camisola, jogava em tronco nú, tal como os outros. Isso poderá até passar por vantagem. Mas resultava em pesadelo nos domingos invernosos, quando sobre nós desabavam impiedosas cargas de granizo. (Mais apropriado seria talvez dizer que choviam picaretas) De mãos na cabeça à laia de capacete, corríamos então para o mar. Cobertos de água até ao pescoço, era esse o modo de nos abrigarmos.


Esses domingos de intempérie obrigavam-me a ir de guarda-chuva para a praia. Findo o jogo e depois de um ou dois mergulhos, - o frio da água não dava para mais - não era fácil vestir a roupa que ficara guardada em sacos de plástico, com uma pedra a fazer peso, não fosse o vento pregar uma partida. No domingo seguinte, lá estava  eu de novo para deixar tudo em campo, tal como os outros. 


Faltar a um jogo era uma vergonha. Havia multas pesadas para quem cometesse falta tão grave. No final da época, o dinheiro dos infractores ajudava a custear um almoço de confraternização. Nem a doença servia de desculpa. Só se o atleta mostrasse atestado médico. 


O regulamento interno do clube previa apenas duas situações. Assim, estava escrito no dito regulamento: Só é permitida a não comparência do atleta a um jogo por morte de homem ou casamento de filha. Mais nada.

 
Jaime froufe Andrade