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BAIÃO CANAL - Jornal

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Jaime Froufe Andrade | Histórias avulso | Não deixes que o medo te mate os sonhos

Histórias avulso 

(A pandemia pôs-nos à espera do futuro. Parados pelo vírus, talvez seja tempo para percebermos o que deixámos para trás. É essa a proposta de Histórias avulso)

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Não deixes que o medo te mate os sonhos

Desajeitadamente, procuro colaborar com o Rodrigo Silva, o Tocas, instrutor deste salto a dois, salto tandem de paraquedas. A avioneta vagueia nas alturas, parece indecisa. Mas agora, aos 3.300 metros, a porta abre-se. A ventania e a barulheira do motor apanham-me à má fila. Manuel Gonçalves, velho ícone das tropas paraquedistas, é o primeiro a largar o avião. Segue-se uma jovem. Andará pelos 20 anos. Na despedida, toca-me com os nós dos dedos. Deve ser acto de culto, gesto litúrgico da tribo do ar, penso. Determinada, passa para o exterior, para o patim da aeronave. Ágil e grácil, mergulha de cabeça, despenha-se no vazio. Agora é a minha vez...

Sentado na chão da carlinga, encaro aquela bocarra escancarada preparada para me engolir. Vou-me arrastando, elegante como um sapo. Chega o momento de pôr uma perna e a outra, fora da nave. Geminado a mim, o Tocas trata do resto da manobra. Não perde tempo. E aí vamos nós, céus abaixo...

Entro numa série vertiginosa de cambalhotas. A velocidade é estonteante. Em meu socorro vem a adrenalina, esse ópio do corpo. Faz-me passar ao lado de uma previsível angústia. Sinto-me ferver num inesperado e avassalador gozo de deuses!

A passagem em queda livre dos dois corpos interrompe bruscamente aquela serenidade tão própria das alturas. O ar, revoltado, lembra o mar em fúria, um oceano gasoso varrido por uma incontrolável agitação. Faz do meu corpo o que quer. Empurra-o para uma viagem desenfreada de montanha russa sem freio, nem carril. A queda prossegue, cada vez mais estonteante, até o Tocas a conseguir estabilizar.

Este voo planado, de braços e pernas abertos, olhos no horizonte, também é excitante. Entro no jogo do "faz de conta". Imagino-me o Superman da minha rua, da minha terra, o Superman do Porto... Mas a súbita abertura do paraquedas põe fim ao devaneio. A torrente de emoções vivida durante o meio minuto que durou a queda livre fizera-me esquecer este decisivo momento.

Agora, de paraquedas aberto, desço suavemente. Vista daqui a terra parece um espaço inocente e inofensivo. Iluminada pelo sol, mostra-se pintada de fresco. Devia ser assim no princípio do mundo. Os carros, na autoestrada, em tamanho e graça são iguais aos carrinhos a corda dos miúdos. Estou no sítio certo para tentar compreender os paraquedistas. Eles dizem que só eles sabem a razão que faz os pássaros cantar.

A aproximação a este mundo onde vivo e ando, todos os dias, de pés no chão vai-me afastando da visão encantatória que tive lá em cima, no reino das alturas. A emoção torna-se mais física com a proximidade da aterragem. A altitude escoa a cada momento como água num ralo. Faltam talvez 200, 50, 10 metros, e eis-me já a correr pelo meu pé na pista do aeródromo.
A experiência, vivida há sete anos atrás, foi a forma que encontrei para festejar os meus 70 anos de vida.

PS - Esta prenda de aniversário que me ofereci exigiu-me prévias ponderações. Levou-me até a questionar a máquina do electrocardiograma para saber o que ela pensaria sobre o assunto. Obrigou-me também a convocar a determinação necessária. Mais fácil seria ter ficado sentado aqui de onde vos escrevo. Preferi levar à risca o ensinamento índio: Não deixes que o medo te mate os sonhos.

Jaime Froufe Andrade