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BAIÃO CANAL - Jornal

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Júlio Isidro A MEMÓRIA NÃO SE ES...FUMA!

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E agora digam-nos ao ouvido que antigamente é que era bom.
O meu pai era um fumador compulsivo. Lembro-me das suas belas mãos - de pianista como a minha avó costumava dizer - de unhas arranjadas, mas queimadas de castanho pelos muitos cigarros fumados desde os...dez anos de idade!
Partiu aos 74 quase sem respirar com enfisema pulmonar e DPOC, doença pulmonar obstrutiva crónica.
Gostava de ver a sua tranquila mestria a enrolar uma mortalha de papel Zig-Zag num pedaço de tabaco retirado com o polegar, de um pacote de onça de tabaco Francez.
Também tinha uma máquina de enrolar cigarros, mas preferia o ritual manual e o toque final com a língua a colar o rolinho de vício.
Costumava comprar o tabaco na casa Havaneza, no caminho de volta da rua de S.Julião, sede da Companhia de Seguros Tranquilidade, onde desperdiçou dois cursos superiores , de Filologia Clássica e Histórico-Filosóficas, como escriturário da secção de acidentes de automóvel, até à reforma legalmente compulsiva.
Na altura era acusado de escrever bem demais, os relatórios de acidentes numa linguagem pouco usual para peritos e mecânicos.
Se não fossem esses relatórios talvez nunca tivesse comprado o meu primeiro motor para um avião.
O senhor Parreira era um perito muito perito em amolgadelas, para-choques, faróis quebrados e até lesões mecânicas nos carros acidentados, mas não era bom de escrever. Fez um pacto com o meu pai para que lhe escrevesse os relatórios dos acidentes . E assim o senhor Isidro (nunca quis que lhe chamassem dr. porque era licenciado, não doutorado) teve uma ideia educativa para o rapaz.
O conceito era:- Faz do sonho realidade, com trabalho.
Pôs-me a sua máquina de escrever Royal à frente e disse-me:- tens aqui os relatórios que escrevi à mão para o senhor Parreira. Por cada um que bateres à máquina, recebes 25 tostões, dois escudos e cinquenta centavos
E, afixou na porta do meu quarto um horário de trabalho e diversão para conciliar, o estudo, a brincadeira e esta “luta” pela vida de um motor.
Custava 250 escudos, logo, bati durante meses, 100 relatórios.
Um dia, com os bolsos cheios de moedas, corri para a Rua José Desaguy em Alvalade, entrei na MOSIL e disse ao senhor Mosil ( que na verdade se chamava Moreira da Silva):- Boa tarde. Quero aquela Webra Mk1 de 2,5cc.
O senhor pôs o motor em cima do balcão e eu despejei todas as moedas que tinha nos bolsos.
Tudo certinho, fiquei teso mas feliz.
Assim tem sido a minha vida, quando quero alguma coisa, junto primeiro e a trabalhar, porque não sei fazer mais nada.
Ainda tenho o motor que trabalha lindamente depois de 65 anos. Material alemão…
Em férias, ia com o meu pai para a "repartição", almoçávamos no restaurante das Portas Amarelas e a volta era uma caminhada pela Rua do Ouro até aos Restauradores para apanhar o eléctrico.
Sempre era mais barato, 8 tostões até ao Arco do Cego e depois a penantes para a João Crisóstomo onde nasci numa casa de 10 assoalhadas com uma renda de 500 escudos, alta para a época. Só nós sabemos o que foi difícil aquele tempo, também de aparências...
O senhor Isidro fumava em todo o lado, até na rua, a caminhar ao meu lado.
Um dia, no Rossio, a nossa caminhada foi interrompida pela abordagem de dois "cavalheiros" a merecerem as aspas que utilizei.
-Por favor mostre-me a sua licença de isqueiro!
Parámos, o meu pai nem retorquiu, e mostrou aos bimbos de chapéu cinzento, uma espécie de carta de condução que eu nunca lhe tinha visto.
- Aqui está - mostrou o documento que o autorizava com um pagamento anual volumoso, a acender os seus cigarros, sem ser apenas com fósforos das caixinhas que eu coleccionava quando vazias.
É verdade, havia fiscais muito parecidos com outros que tais, a controlar os possuidores de isqueiro, como outros, ou os mesmos, a ouvir as conversas que se trocavam nos cafés ou na via pública. Os outros bufavam, enquanto estes...multavam. E com percentagem na multa!
Ao ver hoje o preço de tal licença, 48 escudos de selo ou parecê-lo, constato que com este dinheiro se podia almoçar ou jantar três vezes num restaurante razoável, ou fazer 48 viagens de autocarro a 1 escudo cada bilhete, ou encher meio depósito de gasolina, ou comprar 120 pães a 4 tostões cada, ou beber quarenta bicas a 12 tostões cada, ou comprar 48 jornais a 1 escudo cada, ou no meu caso, comer seis vezes um combinado ( salsicha, ovo, batatas fritas e um batido) no PicNic no Rossio, 8 escudos, quando vinha a pé do Clube de Aeromodelismo de Lisboa na rua da Boavista.
Nesse tempo , um VolksWagen carocha custava 60 contos e um ordenado de três contos era coisa para nos sentirmos remediados. Remediados, a expressão de um povo com poucos remédios....
Um dia, o meu pai mudou de hábitos tabágicos, aparecendo-me com um maço de Provisórios, creio que a custar menos do que dois escudos. E passou a usar só fósforos, para não dar mais gorgetas mal afamadas aos senhores que de cinzento, nos abordavam nas ruas.
E disse-me:- E esta, eu armado em pipi? Mas mais vale fumar Provisórios Definitivamente do que Definitivos provisoriamente.
PS -Se depois de conseguirem ler por inteiro esta epístola, e se quiserem contribuir com preços dos anos 60 e respectivos vencimentos, esta conversa ficará animada . Obrigado
 
Júlio Isidro