Natércia Teixeira | Juno
Agosto chegou sorrateiro e silencioso em contraste com o bulício que carrega com ele.
À minha frente, quatro olhos felinos fitam-me com aquele olhar critico que só os
gatos conseguem ter.
Ao meu lado, outros dois olhos, testam a habilidade para a hipnose ou a capacidade para teletransportar objetos.
Sentada à mesa no meu pequeno almoço tardio, desfruto a paz do fim de semana, o silencio e a companhia dos donos da minha casa, da minha vida e do meu coração.
Já me habituei há muito a não conseguir comer sem ser observada.
Já me habituei também ao conforto de nunca me saber sozinha e de sempre ter quem me aguarda em casa.
Olho a esfinge canina ao meu lado… sentada, imóvel e imponente. Continua a treinar os poderes paranormais para me tentar surripiar comida de cima da mesa, ou em última análise convencer-me a dar-lha de livre e espontânea
vontade.
No primeiro dia que entrou nesta casa, veio direitinha à cozinha, ao local onde se encontra agora: inspecionou pormenorizadamente o pavimento e no final do reconhecimento do território, voltou ao ponto de partida e pareceu ter entendido ser aquele o sítio de eleição para se instalar.
Há emoções para as quais não se inventaram palavras e também há situações que racionalmente nos ultrapassam.
Disse num texto que escrevi há uns dois anos: “precisava de escrever sobre isso…, mas não hoje e não já.”
Creio que o dia é agora.
Perdi, faz dois anos, o cão mais fantástico que alguém pode ter.
Chama-se JUNO e foi um Senhor weimaraner.
O Juno nasceu ensinado.
Ensinado a amar.
Ensinado a perdoar.
Ensinado a superar.
Durante três longos anos, que deveriam ter sido os melhores da sua vida, ninguém ensinou nada ao Juno.
Viveu-os confinado, subnutrido e amedrontado.
Viveu-os na carência, na dor e na imundice.
O Juno apareceu-me num anúncio do OLX. Um anúncio de muitos dias que apareceu aleatoriamente numa pesquisa que fiz no google sobre a raça que me fascinava pela beleza.
Dois weimaraner para doar, aguçou-me a curiosidade, pese embora a razão me gritasse por bom senso.
Abri o anúncio: um criador publicitava a doação de dois cães por falta de espaço no canil.
A credibilidade daquilo pareceu-me similar à hipótese de acontecer, pelo que, passei adiante e fui tratar da minha vida.
A velha máxima que a noite é boa conselheira, no meu caso talvez funcione ao contrário…a razão entorpece e a emoção fica exaustivamente tagarela:
“O que custava ligar? Podia ser verdade...o mais certo era já terem sido dados!
Já não valeria a pena…já nem encontraria o anúncio…, mas se
encontrasse…
O que custava tentar?”
Adormeci com aquela ideia a martelar-me, mais o coração que o cérebro.
No dia seguinte quando tive oportunidade lá fui de novo ao mister google e contra todas as probabilidades o anúncio continuava lá.
Guardei o contacto.
Com a razão bem acordada, falavam os inconvenientes:
“O Baree já estava velhote…não iria aceitar outro cão.
E outro Cão?! Adeus férias…e mais destruição e passeios à rua a dobrar…e despesa.
E depois partem…ou temos de os ajudar a partir o que é ainda pior.
E dado?!”
Abri uma foto de um weimaraner cinzento de olhos azuis, tão perfeito que
parecia irreal.
Calei a emoção e dei voz novamente à razão:
“Dado!?!”
Razão e emoção passaram o dia a debater argumentos, num jogo à partida
viciado.
Ao final da tarde o arbitro corrupto marcou o número de telemóvel do anúncio e uns dias após e 400 quilómetros percorridos estava perante o imponderável e para mim inconcebível, realidade de alguns cães.
Era verão e o Ribatejo é quente, no entanto o impacto ao sair do carro foi muito
mais olfativo que térmico.
Fui convidada pela sra. criadora a visitar as boxes do canil que se avistava no fim de um caminho de terra. Na última boxe estava o motivo da minha viagem, o até então, Ari.
Estava sozinho, porque o outro companheiro de raça tinha ido para um caçador e ele teria sobrado por ter sofrido um pequeno acidente.
Caminhei pelo meio da poeira que se levantava a cada passo que dava, enquanto tentava livra-me das moscas que pareciam ser aos milhares, em direção aos latidos e a um fedor cujo limite desconhecia, mas que me fazia
temer pela minha saúde.
Nas primeiras boxes estavam uns quantos cães de várias raças pequenas, nas seguintes os filas de s. Miguel que teriam supostamente provocado o “pequeno acidente” ao Ari e numa outra os pais dele.
Todos eles a clamar por higiene, mas aparentando estar razoavelmente nutridos e saudáveis.
Parado em silencio no meio da última boxe, observava-me um par de olhos verdes.
Não eram olhos curiosos ou suplicantes…pareciam simplesmente olhos de vergonha.
Chamei-o para tentar que se aproximasse da rede…recuou mais e atravessou
o corpo à minha frente.
Apareceu, entretanto a sra. criadora com os documentos dele.
Segundo ela o Ari tinha tudo…vacinas quando nasceu, (nascera efetivamente, segundo os registos, três anos antes, embora aparentasse ter para cima de dez), Chip não registado, Lop, registo na junta de freguesia…enfim, tinha tudo
legal!
Naquele momento apeteceu-me esbofetear aquela criatura!
E gostavam muito dele…era muito limpinho…fazia sempre no mesmo sítio e para que não vissem as porcarias punha-se à frente a tapar…como estava agora.
Percebi então o que aquele cão estava a tentar fazer naquela posição e compreendi olhar que me dirigiu.
Percebi também que para sair dali o mais rapidamente possível com ele, tinha de me fazer de cega, muda e atrasada mental… e foi o que fiz: fingi acreditar em todas as aldrabices e absurdos que a sra. criadora me quis impingir, para
tirar dali aquele pobre cão.
Quando lhe pus a trela para sair do canil, pareceu-me senti-lo confiante e julgo que ao dirigirmo-nos para o carro percebeu que a sua vida estava a mudar.
Inesperadamente pouco antes de chegarmos ao carro deu meia volta em direção à antiga tutora, eu pensei que quisesse uma espécie de despedida…e na verdade queria: aproximou-se dela, alçou a pata traseira e deixou-lhe em
jeito de lembrança e agradecimento um belo de um xixi a escorrer-lhe pernas abaixo.
Feitas as despedidas, veio orgulhosamente na minha direção.
Eu não consegui conter o riso…ela a estupefação.
Sacudia-se e balbuciava que ele nunca tinha feito tal coisa, vaticinei e bem que provavelmente não o voltaria a fazer.
Abri a mala do carro e não tive de lhe pedir para subir.
Inspecionou as mantas que estavam lá para ele, deu duas voltas e acomodou-se.
Ouvi-o dormir pacificamente por duas horas e achei que depois desse tempo devia esticar as pernas e beber…aceitou a água, aparentemente confuso por não ter cheiro, sabor e não ser verde como a que vi que estava habituado a ter
disponível.
Comeu com satisfação e incredulidade uns biscoitos, mas recusou sair do carro, apesar da curiosidade que o exterior lhe parecia suscitar.
Os arcos salientes que as costelas lhe desenhavam na pele, talvez fossem o motivo de não querer correr riscos a aventurar-se num desconhecido que poderia ser parecido com o que lhe era familiar.
Mais duas horas de viagem e chegamos a casa.
Para além do cheiro pavoroso, estava coberto de bosta das patas às orelhas e provavelmente infestado de pulgas pelo que era impensável leva-lo para dentro de casa naquele estado.
Lembrei-me do que a sra. criadora tinha dito…” medo da água”.
Fomos para a garagem, o único sítio a que me atrevia leva-lo naquele estado.
Baixei-me ao nível dele e comecei a falar-lhe como faria para uma criança a explicar a necessidade daquilo…olhava-me calmamente até pegar na mangueira…aí disparou para o fundo da garagem quase arrastando-me com
ele.
Encostou-se à parede e vi medo no olhar…sozinha, com um cão que mesmo esquelético, tinha porte, assustado e que eu desconhecia ter ataques epiléticos quando em stresse…que não me conhecia…socorri-me provavelmente mais da
proteção divina, que de outra coisa qualquer, para empreender a tarefa a que me propunha: dar-lhe um banho.
Deixei-o onde estava, peguei no frasco do champô e fui até à torneira…abri um pouco a água e deixe-a correr pelo pavimento…ele observava-me.
Segurei a mangueira pela torneira e fui-a arrastando pelo chão lentamente até ele.
Manteve-se imóvel a ver a água correr pelo chão e chegar-lhe ás patas.
Era um fim de dia quente de julho, a água tépida a molha-lo pareceu saber-lhe bem…afinal o medo seria das mangueiras não da água.
Baixei-me ao nível dele e sempre a falar-lhe fui-o molhando das patas para cima.
Tinha uma ferida enorme, aberta e infetada entre as omoplatas e uma orelha rasgada, para além de outras mazelas.
Faltavam-lhe literalmente bocados de carne, que teriam sido arrancados no “pequeno acidente”, que tivera.
Não recebeu tratamento veterinário porque segundo a sra. criadora, aquilo curava sozinho.
Posso dizer que se curou com dois meses de tratamento veterinário semanal e uma bateria de medicamentos…posso dizer também que a cicatriz do dorso que se assemelhava à imagem de um anjo de braços abertos, nunca
desapareceu e demorou dez anos a passar do tom rosado à tonalidade acastanhada da pele que lhe era característica e ali o pelo nunca nasceu.
Enquanto lhe espalhava o champô, pressentia-lhe o medo e ia-lhe falando para o tentar acalmar. Os cães podem não entender o significado das palavras, mas entendem perfeitamente o tom de voz.
Julgo que foi quando lhe disse que não o iria magoar que ele pousou a cabeça no meu ombro e assim permaneceu o resto do banho.
Aquele foi o momento que ambos soubemos que poderíamos confiar um no outro…incondicionalmente.
Creio que a haver uma palavra que defina o Cão será essa:
Incondicionalmente.
Creio que a haver um sentimento que atormente uma mãe será o da perda.
O único senão de um cão é viver menos que nós, adotar um adulto rouba-nos ainda mais tempo.
Tinha o Juno há 10 anos…mas sabia que tinha treze.
O fim assusta e a partir de um ponto sabemos que está próximo.
Tememos por eles, porque não queremos que sofram, mas tememos muito mais por nós porque sabemos o quanto vai doer.
Naquele domingo de agosto tive de o apressar e ele já não podia correr.
Continuava com as manias de sempre…duzentas voltas antes de fazer as necessidades no mesmo sítio de sempre.
Se saíssemos do nosso ambiente, demorava três dias para voltar a fazer porque lhe faltava o “sitio dele”.
A custo lá o convenci a regressar a casa…foi direito à cozinha.
Impacientei-me…comer àquela hora e eu a ter de sair para o hospital!
Deitado no meio da cozinha que mais poderia ser?
Vi que tinha água e pus-lhe uma mão cheia de ração.
Continuou deitado a olhar para mim.
Julgo, mas não tenho a certeza que lhe disse o de sempre:
“porta-te bem que a dona já volta!”
Sei que naquele dia o disse com pouca convicção, porque na verdade temia aquela ida ao hospital, o que iria encontrar e o que iria suceder…instintivamente pensei: em agosto…de novo!
Também não me lembro se lhe fiz a festa de despedida do costume, talvez não
tenha feito.
Regressei umas horas mais tarde…pela escada acima só pensava deitar-me no sofá com o meu Juno…esquecer o mundo e aquele mês de más memorias e maus augúrios.
Entrei em casa e como há algum tempo o meu “menino” ficara surdo, era eu quem o procurava para que soubesse que eu estava de volta.
Avistei-o no mesmo sítio onde o deixara.
Comecei na tagarelice de sempre com ele…mesmo não me conseguindo escutar, eu não perdera esse hábito.
Cada passo na sua direção foi-me emudecendo ao mesmo tempo que o silencio me estrangulava a ponto de me sufocar.
Nas semanas…meses… que se seguiram, não houve uma única vez que ao passar ou olhar para aquele local o remorso não me consumisse…o meu menino partiu sozinho, não estive lá para o confortar e nem sei se lhe dei a
festa que seria a última.
Passados dois anos, ainda acontece ter esses mesmos pensamentos.
Há dores que não se extinguem, como há memorias que não se apagam.
Sempre que a Temoni se senta ou deita naquele sítio, sei que em algum lugar aquele Cão vive e quer continuar a lembrar-me qual foi o seu propósito na minha vida…e mostrar-me qual é o meu.
@Natércia R. Teixeira
15/08/2023