MARIA ODETE SOUTO | Natal é Família
De todas as festas anuais, o Natal sempre foi, a que mais apreciei. Não tanto pelo “espírito natalício” que hoje se vive, cheio de luzinhas e de música, de compras e de prendas, mas porque era vivido em Família.
Sempre fomos muitos em casa da minha Mãe, o dinheiro escasseava e tinha que ser muito bem contado e gerido, para que chegasse para o essencial. Mas, no Natal sempre se cumpriu a tradição. E esta coisa da tradição tem muito que se lhe diga.
À pequena aldeia de Guimarei chegou o transporte público, a camioneta, já eu tinha 10 anos. Até então, vinha-se a pé apanhar o autocarro, à freguesia vizinha de S. Tiago da Carreira. Não se faziam grandes iluminações, embora houvesse luz elétrica, porque ao que consta até o Menino Jesus, em Belém, dispensou tais luminárias. Fazia-se o presépio na igreja e na escola primária.
Na casa da minha Mãe, cumpria-se a tradição: juntava-se a família, mais um ou outro que estava mais sozinho, cozia-se as batatas com o bacalhau e as couves, faziam-se as sopas secas e a aletria e estava a Ceia de Natal pronta.
As festividades começavam na véspera de Natal, com a ida ao campo colher as couves, muitas couves porque era muita gente e tinha que sobrar para a roupa velha. Depois, era o preparar o pão para as sopas secas. Feitas estas e a aletria, saltavam as enormes panelas para o lume para terminar a ceia.
E estarão os leitores a pensar: e as rabanadas, e o bolo e rei e…?Pois é, as tradições vão-se fazendo. O dinheiro não chegava para tudo e, por isso, é normal, nas terras, procurarem-se sabores e saberes culinários em função da carteira. E estes dois doces natalícios a que aludi eram muito baratos e diga-se, são, ainda hoje, muito apreciados pelos Soutos. As sopas secas levam apenas pão (velho), açúcar amarelo, água e sal e vão ao forno (de lenha, naquela altura); a aletria era, e é, feita com água, casca de limão e açúcar.
E comia-se. Que bem que sabiam! E era uma algazarra, em torno daquela mesa enorme, naquela que sempre foi e é a sala de visitas da casa da minha Mãe – a cozinha, com muita gente que ria e falava alto. Comido o bacalhau, passava-se às sobremesas. Saíam o alguidar das sopas secas e as travessas da aletria para a mesa, e continuava-se a comezaina.
A máquina de lavar loiça funcionava a várias mãos e, por isso, com grandes bacias de água e sabão, lá se procedia à lavagem da loiça, enquanto outras mãos tratavam de “esmagar” as sobras, num grande tacho, fazendo a “roupa velha”, que era o almoço do dia de Natal.
Havia um enorme canhoto de lenha que ardia na lareira e que se aguentava toda a noite, para aquecer o ambiente que nunca chegava a esfriar, não tanto pelo calor que daí emanava, mas pelo calor humano. Arrumava-se a mesa, deixando apenas as sobremesas e o vinho, pois a noite era longa. E conversava-se, ria-se e jogava-se cartas.
A casa da minha mãe era uma casa aberta e era frequente irem chegando mais pessoas, vizinhos e amigos que sabiam que ali havia gente a rir, a conversar e a jogar, e que iam aprendo, ao longo da noite.
O tempo foi passando, as condições de vida melhorando e acrescentou-se à “tradição” outras iguarias: pão de ló, queijo, bolo-rei, rabanadas, bilharacos, perú, cabrito, bebidas espirituosas e outras. Tudo com fartura. E passou-se a fazer a árvore de Natal. Mas manteve-se a essência: estarmos juntos, de porta aberta para os que queiram vir. Na mesma cozinha onde se colocou a segunda mesa e onde cabem, 20, 30 e mais pessoas. Todos os que vierem por bem. Há sempre uma chaminé onde se colocam os copos se não houver lugar na mesa e um prato para pegar na mão ou usar o balcão como mesa. Haja alegria e boa-vontade.
Nunca passei um único Natal fora desta cozinha e da minha família de raiz. Não sabia como fazê-lo e não me faria sentido. E não vai ainda ser este ano que isso vai acontecer.
Está lá a semente e o sentido de Natal: Família. Só partiu a minha Mãe, mas, mais uma vez, ficou a sua obra e a sua memória. Para ela, como para nós, Família é um valor maior. É aquela que nos tocou, mais a que fomos construindo. É afeto. É amor. Mais uma vez, seremos muitos naquela cozinha que tanto nos diz e que nos une. O maldito vírus que teima em isolar-nos não levará a melhor. Todos testados, não vá o diabo tecê-las, lá estaremos a celebrar o Natal. Sem troca de prendas que não sejamos nós, a nossa presença e aquilo que nos une.
Todo o resto, meus amigos e minhas amigas, é comércio, e as coisas mais importantes da vida não são compráveis nem vendáveis. Não têm preço.
Um Feliz Natal para todos e todas, qualquer que seja o sentido que lhe atribuem.
Odete Souto