Natércia Teixeira | "...Era véspera da noite de consoada e regressava a casa...."
Fazia um frio terrível.
Era véspera da noite de consoada e regressava a casa.
Aquele seria um Natal diferente.
A música que tocava, uma melodia intemporal, transportava-me para outros natais…vagueava por entre desejos realizados e sonhos inacabados, por vínculos incorruptiveis e laços que se diluíram, pela consistência do que é integro e pela volatilidadedo fútil.
Nesta quadra só não sucumbem os corações intactos, os outros sobrevivem-lhe com distrações.
Eu vinha de me distrair.
Olhei os poucos sacos enfeitados com laços espampanantes, pousados no banco traseiro do carro e lembrei-me do primeiro Natal de que tenho memória…também esse um Natal de frio terrível.
Esqueci-me com o que me presentearam, mas recordo a minha preocupação com o gato que foi impedido de estar comigo na sala de jantar.
O aroma intenso a queijo que o calor do carro potenciava, faria as delícias do dito gato.
Magiquei o que fazer com um queijo da serra daquele tamanho…precisava de me habituar a contar os lugares vazios.
Abrandei a velocidade…estava perto de casa e com a temperatura que fazia era provável o gelo na estrada, dessa forma também conseguia apreciar melhor a iluminação de Natal…humilde, em comparação com a exuberância da que vira na grande cidade, mas ainda assim com a arte de cobrir de magia a vila que tremeluzia de salpicos dispersos de luz.
Magia que nutria a inocência das crianças e com o engenho de apaziguar, pelo tempo do vislumbre, as agruras dos mais velhos.
Ao virar da esquina os faróis do carro incidiram num vulto enrolado no passeio. Parei o carro e fiquei a observar…já avistara aquele cão a vaguear pelas redondezas e tentara uma aproximação, sem nenhum sucesso.
Parecia querer passar despercebido…mantinha-se distante das pessoas e tentava ocultar-se atrás de sebes e árvores a observar de longe os movimentos humanos…era desconfiado e esquivo e não aceitava aproximações mesmo com ofertas de alimento.
Pressentiu a minha contemplação e levantou a cabeça na direção do carro…consegui admirar de longe uma cabeça magnificamente desenhada e um par de olhos bicolores que também me observavam.
Lentamente desenrolou-se e ficou em pé, supus que para se colocar em fuga, mas em vez disso deu meia volta e colocou-se atrás de um dos pilares de suporte do coberto onde procurara abrigo.
Admirava-me a estratégia com que agia.
Para além do queijo, que não era uma hipótese, não tinha nada comigo para seduzir o animal pelo estomago ou para tentar persuadi-lo a deixar-me aproximar.
Faltava-me também uma resposta sobre o que me impelia a tentar aquela aproximação.
Dei por mim fora do carro a tiritar e a atravessar a rua na direção do cão.
O que se seguiu talvez se deva a uma qualquer magia que grassa pelo universo nesta época do ano e que assombra também os céticos e desencantados.
Parei a cerca de dois metros do bicho que surpreendentemente continuava imóvel.
Baixei-me ao nível dele e num sussurro perguntei-lhe:
“Queres vir?”
Olhou-me pela primeira vez fugazmente nos olhos, parecendo entender perfeitamente a minha intenção.
Voltei a repetir:
“Queres vir?”
Um quase impercetível movimento na minha direção deu-me indicação que pretendia algum tipo de interação…muito lentamente estendi a mão na sua direção e senti-lhe a respiração morna.
Calmamente aproximou o nariz e cheirou-me a mão com aparente interesse, pelo tempo de ficar satisfeito com a inspeção…voltou a cruzar de fugida o olhar com o meu e sentou-se à minha frente.
Fiquei em pé de frente para ele e fui recuando até ao carro enquanto o incentivava:
“Se queres vir anda daí…anda…”
Até chegar à porta do carro não manifestou nenhum sinal ou intenção de me acompanhar…observa-me e seguia os meus gestos…apenas as orelhas mexiam quase imperceptivalmente a cada palavra minha.
Entrei para o carro e pu-lo a trabalhar.
Abri a janela e estendi a mão na sua direção para me despedir…surpreendentemente vi-o mover-se e caminhar em passos lentos, mas confiantes, na minha direção.
Surpreendida, mantive-me imóvel a observa-lo aproximar-se e à névoa formada pela sua própria respiração, que em redemoinhos lhe emoldurava a cabeça como uma aura…chegou tão próximo da minha mão que era capaz de sentir o calor que dele emanava.
Apenas lhe disse:
“Anda…”
Coloquei o carro em marcha e fui avançando muito lentamente com a mão de fora da janela…ele seguia-a.
Com ele a caminhar ao lado do carro e eu de braço estendido e enregelado, percorremos a curta distância até minha casa.
Recordo que entrou calmamente em casa e que aceitou o que lhe dei para comer sem grande sofreguidão.
Depois, escolheu a passadeira do corredor para se instalar e por lá ficou a noite e grande parte da manhã do dia seguinte…fui espreita-lo inúmeras vezes e só o movimento subtil das orelhas me dava conta que sentia a minha presença.
Demorei para cima de uma semana até conseguir colocar-lhe um peitoral…o pescoço ferido, marcado por uma coleira e a desconfiança, inviabilizavam este simples gesto.
Passou mais de um ano até que me permitisse dar-lhe um abraço… com o tempo e a confiança começou a tomar a liberdade de subir para a minha cama e fazia por lá umas sestas, até ser hora de me deitar…à minha chegada, descia da cama e preferia dormir no tapete ao meu lado.
A primeira vez que fui presenteada com um “lambeijo” foi nos últimos anos que partilhamos, andaria pelos oito de idade.
O Baree mudou aquele Natal e os sete que se seguiram.
É o cão que mora nas memorias que o meu coração guarda.
Baree, o cão que um dia terá sido o presente de alguém, foi a minha dádiva…aquele que veio para me ensinar o valor do empenho da conquista pela Confiança.
Desejo a todos um Natal de muitas dádivas.
Natércia Teixeira