Jaime Froufe Andrade | Histórias avulso
(A pandemia pôs-nos à espera do futuro. Parados pelo vírus, talvez seja tempo para percebermos o que deixámos para trás. É essa a proposta de Histórias avulso)
Naquele tempo era assim
Estou cercado por licenciados, doutores, investigadores, cientistas, mestrandos e quejandos. É no meu seio familiar, no prédio onde vivo, na casa ao lado, no prédio em frente, em toda a minha rua, nas ruas circundantes, na cidade, no País. A senhora do pomar onde compro laranjas tem um filho investigador. E a filha do sapateiro-rápido mais próximo é cientista.
Este fantástico manancial de sabedoria certificada que corre à minha volta faz-me sentir um iletrado. De facto, tenho apenas dois diplomas. Muito pouco para os dias de hoje. Um, o do antigo 7º ano do liceu; o outro, o diploma de ranger. Ainda tentei um curso de tirador de cerveja, mas desisti por falta de vocação.
Ironia à parte, devo dizer que muito me agrada ver passar por mim este manancial de canudos. Faz-me prova de quanto Portugal avançou no campo do ensino. É preciso não esquecer que em 1973, anos depois da ida do Homem à lua, quase 30% dos portugueses não sabia ler nem escrever, e cerca de 50% apenas conseguia rabiscar o nome e soletrar os títulos das notícias.
Venho de um tempo em que os doutores por cá não eram muitos. Era aconselhável ter-lhes muito respeitinho. Sabe com quem está a falar? poderia ouvir alguém, novo ou velho, se não tratasse o senhor por “senhor doutor”...
Na dúvida era sempre preferível não arriscar outro tratamento. Sobretudo se o senhor trajasse bom fato. Ou então conduzisse automóvel de boa marca. Não era o meu caso, mas mesmo assim também suscitei dúvidas. No momento de abastecer o carro, por exemplo: Quanto vai meter hoje, senhor doutor? Acabei por informar o funcionário da bomba da minha condição de não doutor. Ficou desorientado. Da vez seguinte, já recomposto, perguntou-me: Quando vai meter hoje, senhor engenheiro? Naquele tempo era assim.