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BAIÃO CANAL - Jornal

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Rita Diogo | Quando perdemos alguém: o luto em pandemia.

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Todos nós já perdemos pessoas importantes na nossa vida. O luto não está exclusivamente ligado à morte, pode ser vivenciado também aquando do fim de um relacionamento, numa situação de doença grave, a perda de um emprego, uma situação extrema que resulta em alguma forma de incapacidade. Quando perdemos pessoas de quem gostamos e que têm um papel importante na nossa vida, os sentimentos que vivenciamos representam maior sofrimento quanto maior o nosso apego. Falemos, portanto, de luto enquanto a reação que temos diante da morte ou perda de um ser amado. Frente à instalação destas perdas significativas, o luto é visto como um processo mental que as designa, para o qual nunca estamos preparados, para o qual nunca fomos ensinados. A única coisa que temos como garantida no dia em que nascemos é que um dia iremos morrer e de, facto, estamos tão pouco preparados para enfrentarmos o fim da existência (nossa ou de outros). A constatação da fragilidade humana deveria ajudar-nos nesta tarefa, mas tal não acontece.

Em poucas horas após o conhecimento da perda ou morte de alguém querido, a maioria das pessoas sente uma espécie de atordoamento emocional, como se não pudesse acreditar que realmente aconteceu. Apesar de natural e comum, essa sensação de irrealidade pode tornar-se um problema se durar por muito tempo. Quando esta dormência emocional desaparece, pode ser substituída por uma terrível sensação de inquietação e sensação de querer ter a pessoa de volta, mesmo que isso seja claramente impossível. Nesta fase algumas pessoas sentem vontade de "ver" a pessoa amada onde quer que estejam - na rua, no parque, ao redor da casa, principalmente nos lugares que passaram juntos. Esta fase de inquietação e ansiedade pode trazer consigo sentimentos de raiva e/ou culpa que devem ser trabalhados. Segue-se a invasão da nossa alma por sentimentos de tristeza ou depressão. A apatia e desinteresse refletem, na verdade, pensamentos recorrentes sobre a pessoa perdida. Com o passar do tempo, o sofrimento do luto começa a dissipar-se, diminuem os sintomas depressivos e a pessoa sente ser possível começar a pensar noutras coisas, a olhar novamente para o futuro. Estas diferentes etapas do luto, muitas vezes, sobrepõem-se e mostram-se de maneiras diferentes em cada pessoa. A fase final de um processo luto é um "abrir mão" da pessoa que partiu e dar início a um novo tempo de vida. As pessoas são diferentes e diferentemente reagem à vida, tanto nos momentos bons como nos sofrimentos. O luto é uma vivência única que leva tempo, o tempo de cada um. O maior problema do luto é que tem de ser vivido e sentido. É normal chorar, ficar zangado, querer negar. É importante permitir-se sentir e chorar para poder reconstruir emoções.

Sabemos que os rituais associados à morte respondem a uma série de propósitos importantes no processo de luto: podem ajudar a tornar a morte mais real; oferecem a oportunidade de estabelecer ligações, de exprimir e partilhar pensamentos e sentimentos acerca da pessoa que faleceu e de, formalmente, dizer adeus; reúnem famílias e outros enlutados que se apoiam mutuamente. Sabemos que a vivência do luto, os rituais ligados morte foram drasticamente alterados com a pandemia: os funerais foram restritos, deixaram de ser fazer velórios, o corpo estava em caixão fechado. Estas alterações significam adiamentos nos processos de luto. Num contexto de pandemia, o abraço e a proximidade física com os outros não pode existir, há um afastamento da rede de apoio potenciando maior solidão e vulnerabilidade, podendo tornar o processo de luto mais prolongado e complicado. Viver uma crise interna (perda de alguém), dentro de uma crise pandémica pode acentuar os sintomas de ansiedade e depressão. Experienciar o luto, em simultâneo com as preocupações extremas que vivemos atualmente, pode significar que a elaboração das emoções, num processo de adaptação à perda, seja mais penosa e prolongada. O isolamento pode, pois, dificultar a elaboração do luto. Em momentos de crise, quando há um fluxo constante de atualizações da informação com características maioritariamente angustiantes, as pessoas podem não conseguir reconhecer a dimensão da sua dor, desvalorizá-la perante as circunstâncias globais e, consequentemente, não responder adequadamente às suas próprias necessidades.

Em Portugal, perto de 17 000 pessoas perderam a vida por COVID19. Se alguém morre por COVID19 ou de complicações daí resultantes, podem ocorrer situações particularmente difíceis para a família e amigos. O controlo de infeção pode implicar que os membros da família não tenham a oportunidade de acompanhar nas últimas horas e dias de vida, ou mesmo de se despedirem. Dependendo do caso, a doença pode progredir e tornar-se grave muito rapidamente, o que pode levar ao choque. Se não puderam estar presentes no momento da morte e não puderem ver o corpo, pode ser ainda mais difícil aceitar a realidade de um luto. O enquadramento social da crise faz com que as pessoas em luto estejam expostas a histórias que destacam a natureza traumática da morte. Numa situação de pandemia, inevitavelmente existe muita discussão sobre a morte e o morrer e isso pode trazer sentimentos e emoções difíceis de gerir, para pessoas com problemas de ansiedade e saúde mental. Também pode trazer lembranças de lutos passados e o medo da morte, bem como trazer sentimentos de medo acerca da sua própria morte.

É, por tudo isto, importante não sentir culpa daquilo que se sente, entender que cada um reage de uma maneira individual e muito própria, de acordo com a sua história, com a natureza da relação com o objeto da perda, com os seus recursos internos e também com o apoio e conforto social encontrado e/ou disponível. É também importante pedir ajuda quando o sofrimento se prolonga no tempo e quando a sua intensidade impede o retomar das rotinas.

Rita Diogo (Arquivo)