UMA NOITE SEM FIM COM UM DIA DE COMEÇO
Nem todas as noites de 24 de Abril - anteriores ao “dia inicial, inteiro e limpo” - nasciam prenhes de modorra ou tristeza. Nalgumas delas, amiúde, também se ouvia o ruído do silêncio berrado com a mão à frente da boca.
Aquela noite de 1974 foi uma dessas: afinal não havia razões para estar macambúzio!
A circunstância de completar 19 anos nesse dia, fazer parte de uma tribo disposta a beber uns copos e a cantar “os parabéns a você” na zona de Cedofeita (Porto), tornavam o céu cinzento menos ameaçador, mesmo que eles viessem com ‘pés de veludo’. E assim foi. Entre brejeirices e cervejolas, por ali fomos ficando a contar os escudos que quase não davam para pagar as garrafas vazias que iam indo.
O Sérgio “cigano”, com quem tinha brincado e crescido na Rua da Torrinha (estava à bica para ser incorporado no exército/guerra do Ultramar), também apareceu, fingindo não saber que havia bebida e folia de aniversariante.
- Ouvi dizer que há gajos a pirarem-se para França para não irem à tropa. Da ilha de “Aníbal Cunha” parece que já foram dois, sussurrou por entre os dentes precocemente amarelados. Ouvimos e assobiamos para o lado!
Porque havia aulas ao outro dia e algum receio das consequências da entrada em casa dos pais a horas demasiadamente tardias, a tribo dispersou pelas duas e tal da manhã sem saber que, alguns de nós, íamos fazer quase uma directa, à má fila.
O “chefe” lá de casa tinha uma mercearia – nas traseiras morava a família. Por isso, cumpriu-se o ritual do costume: entrar de forma sorrateira, não acender a luz, ligar o rádio (baixinho) e começar a ouvir aquelas músicas completamente “fora” que costumavam passar de madrugada no RCP (Rádio Clube Português) – The Doors, Blind Faith,The Beatles, Rolling Stones, Beach Boys, The Byrds, etc. E também algumas músicas “esquisitas””, de malta que adivinhávamos ser da malta: José Mário Branco, Sérgio Godinho ou José Afonso.
Fintando a vontade de dormir, os minutos corriam à desfilada para as oito horas e trinta – hora de entrada para as aulas no então Liceu D. Manuel II (Porto), hoje Rodrigues de Freitas. Distraído, ausente, sonolento – efeito da noitada e de uma ou outra branquinha fresca a mais – ouço, lá para os lados das quatro da manhã, um senhor a dizer umas frases que falavam de “Movimento das Forças Armadas”, “calma em todo o país”, etc. A música mudou, porquê? Esta que está a passar é uma chatice! Terei exagerado na bebida? Levantei-me de supetão, molhei a cara e fui servir-me: fruta e uma garrafa de água Castelo por causa da azia.
O que é isto? Um golpe de estado? Uma revolução? Mas que é isso de revolução? O Kaúlza de Arriaga andava por aí, diziam-me tempos antes companheiros mais avisados que eu. E aquele Março nas Caldas? Afinal quem eram aqueles militares? Que queriam? Que lhes aconteceu? Onde estão? Esta coisa, agora, será para pior ou para melhor? perguntava-me, baralhado.
Cá dentro começava a fervilhar a inquietação, inquietação… era só inquietação, cantaria o Zé Mário anos mais tarde.
Estranhamente - não que fosse por norma atrasado, mas o colchão é bom aconchego - às oito da manhã já estava à porta do Liceu. A maioria da rapaziada de nada sabia.
Como sempre, o pessoal mais activo na contestação ao regime fascista e à guerra colonial (Núcleos Sindicais/Grito do Povo/OCMLP, com quem tinha alguns contactos, UEC e estudantes sem ligação orgânica) já improvisava sessões contínuas de informação e discussão. Não me lembro se houve aulas… sei que não fui!
Ao fim da manhã – a tribo do costume – chegou à Praça, onde tudo se passa, no Porto. Instalados no nosso “posto de comando” – a Praça – deparámos com sinais evidentes de que algo estaria a mudar:
- tropas a guardarem o antigo Palácio dos Correios (vim a saber mais tarde que ali funcionava um centro de telecomunicações e, por isso, era um objectivo estratégico do MFA);
- à chegada de carrinhas da polícia, talvez por volta das 14/15h, ondas efusivas de contestação; - feridos, pedras pelo ar, vidros partidos no Stand da Fiat, no Serviço de Informações Fiscais, etc. Subitamente, o exército intervém e o inaudito acontece: a PSP a fugir, Avenida abaixo com abandono completo das suas carrinhas, também elas alvo da ira popular. Pela primeira vez, via os sentidos trocados: os manifestantes a correrem atrás da polícia.A meio de uma tarde com deambulações repetidas pela Praça, chegámos ao jornal O Comércio do Porto, hoje edifício do Banif. Os jornalistas haviam instalado um “dazibao” (jornal de parede) onde eram colocadas notícias actualizadas e simples panfletos surgidos da criatividade espontânea da população.
Ao fim da tarde, alguém se lembra: e a PIDE?
De novo a tribo muda de caminho: Rua Passos Manuel acima, Praça dos Poveiros, Jardim de S. Lázaro … e tiros vindos da Esquadra da PSP (junto à Escola de Belas-Artes), que ficaram documentados até há uns tempos nas paredes da Biblioteca Municipal do Porto.
No Largo Soares dos Reis/Rua do Heroísmo uma constelação maior de gente a gritar o seu ódio ao fascismo, à polícia política e exigindo a libertação imediata dos presos.
A revolução continuou o seu rumo, mas as dores nos pés motivaram o regresso a casa e deixámos de fazer parte da plateia interventiva nos acontecimentos.
Na manhã de 26 de Abril, com horas agitadas e mal dormidas, não houve Liceu para ninguém. A Praça continuava a ser o destino obrigatório desta movida que ainda não tinha sido inventada.
Mas a PIDE cercava bem alto os corações aflitos. De novo rumo à Rua do Heroísmo. Ao início da tarde Virgínia Moura, Óscar Lopes e mais alguém aparecem à varanda que ainda lá está…porque o resto foi apagado da memória! Acho que ninguém conseguiu ouvir o que disseram. O grito de “Morte à Pide” – “Libertem os Presos” sobrepôs-se a tudo, inclusive às buzinas dos carros que saudavam a nova era. Mais ou menos a meio da tarde, começam a ser libertados os presos políticos (um deles, de quem já tinha ouvido falar, era o José Penafort Campos, posteriormente director do Jornal “O Grito do Povo”), tendo o último - já em tempo de descontos - sido um Homem que vim a conhecer pessoalmente, bastantes anos mais tarde e que tem participado nalgumas sessões da Associação José Afonso: Jorge Carvalho (Pisco).
Finalmente com a consciência descansada, alguém da tribo acelerou para o Quartel-General, na Praça da República. Fomos todos. Já se sabia do papel de António de Spínola na Junta de Salvação Nacional. Meses antes tinha apanhado um panfleto que dizia que o Portugal e o Futuro era uma solução do tipo “mudar alguma coisa para que tudo fique na mesma”. E o Ultramar? E ir para “a guerra”?
Chegados a tempo, não resistimos a ir beber um fino ao Café Novo. Dali ouvimos um militar falar à população, interrompido por um carro militar que, ao que soube depois, perdeu os travões e atropelou, sem querer, algumas pessoas. Para a tribo, o discurso não era apelativo nem de confiança (havia demasiados cartazes a saudar António Spínola), por isso demos meia-volta… e, de novo, seguimos para a Praça. Desta vez pela Rua do Paraíso e, para não variar, mais tiros da Esquadra lá do sítio. É verdade que houve alguns incentivos a que tal acontecesse. Nos dias seguintes continuou a correria desenfreada sem ir às aulas e sem pensar se havia aulas.
Porque não há certezas absolutas quando se corre à frente do tempo, talvez no fim da tarde do dia 27 foi ocupada a Cooperativa Cidadela na Rua Augusto Luso, paredes meias com o Liceu D. Manuel II. Sabíamos que dali tinham saído brigadas para gravar homilias do Padre Mário de Oliveira (da freguesia da Lixa, concelho de Felgueiras), de modo a incriminarem-no nos vários processos que tinha nos tribunais do regime. Fotografias dos maiores torcionários nazis, publicações fascistas, cadernos com nomes de activistas do movimento estudantil… tudo pairava por lá. Lembro-me que havia um frigorífico pequeno, com cerveja. A vontade era muita, mas o nojo pelo espaço em que estávamos impediu-nos de ceder ao desejo. Enquanto se dava o justo correctivo à Cidadela, chegava à nossa “agência de comunicações” a informação de que, mais ou menos à mesma hora, as instalações da ANP (Acção Nacional Popular, partido de Marcello Caetano), na Rua Dr. Alfredo Magalhães, tinham sido ocupadas e declaradas como sede do MDP (Movimento Democrático Português). Não tivemos tempo para ir lá.
Entretanto, muita vida se foi passando naquelas noites e dias: plenário no Liceu D. Manuel II nos finais de Abril para exigir, entre outras coisas, a reintegração dos estudantes expulsos, devido à sua participação na contestação ao “Festival dos Coros” (4/04/1973), apoio aos pescadores do arrasto de Matosinhos que estavam em greve, etc.
Também fomos para o 1º de Maio na Praça em que, perante discursos mais ou menos contidos, se vociferava contra a Guerra Colonial e se exigia o fim do embarque de soldados para as colónias.
Tudo contado, provavelmente com omissões e elucubrações derivadas de sonhos não concretizados, sei que quero acabar este testemunho reportando o dia 6 de Maio de 1974: no Palácio de Cristal, Porto, tarde e noite, organizado pelo CCT (Círculo de Cultura Teatral) e pelo então recém-nascido CAC (Colectivo de Acção Cultural), aconteceu o 1º Encontro Livre da Canção Popular. Morava na Rua do Rosário, a 5 minutos do Palácio. Lá foi a tribo do costume. Chegámos a tempo de ajudar a pôr umas cadeiras na sala.
Alive e ao vivo ouvia pela primeira vez, juntos no mesmo palco, Zeca, Cília, Zé Mário, Fausto, Freire, Adriano, Samuel e outros mais a dizerem hinos de liberdade e a cantarem a vontade de mudar o mundo.
50 anos depois… valeu a pena? VALEU POIS!
E agora, Zeca: O QUE É QUE FAZ FALTA FAZER?
Porto, Abril de 2024
Paulo Esperança
(adaptação do texto com o mesmo título publicado no livro “25 de Abril, Roteiro da Revolução”, coordenação de José Mateus, Raquel Varela e Susana Gaudêncio, 2017, Edições Parsifal)