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BAIÃO CANAL - Jornal

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OBLIQUIDADES (5) | JAIME MILHEIRO

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Tive um amigo de muitos anos, numa intimidade partilhada desde os tempos do Liceu, com quem sempre ajustei lealdades que dir-se-iam congénitas e não susceptíveis de ocorrentismos ou de alvoroços, cuja memória ainda frequentemente levanto em alegrias e sobressaltos.
Nunca duvidamos um do outro, raramente competíamos, quando discutíamos facilmente recuperavamos perspectivas conciliáveis e identidades verificáveis, mas na vida factos estranhos podem surgir...

(Até o conto do vigário
pode acontecer...)

porventura descalibrados em contingências atrapalhadas.

Um dia, com explicações esforçadas e plausíveis, veio a minha casa pedir-me duzentos contos emprestados.
Era muito dinheiro na altura, um médico no serviço hospitalar ganhava por mês uns doze ou quinze, sabia-o num momento difícil por razões familiares e outras...

(Amigos comuns haviam-me sussurrado
que ter-se-ia deixado encadear
em malabarismos que não devia…)

pelo que me prestei naturalmente a colaborar.

Como não dispunha de tanto dinheiro passei-lhe um cheque de cem.
Visivelmente satisfeito e reconhecido, apesar de pela minha parte não haver qualquer hipótese de desconfiança, ele insistiu em garantir-me todos os cumprimentos de um empréstimo pragmaticamente realizado e entregou-me um cheque pré-datado do mesmo valor, a receber seis meses depois.
Nada de novo aconteceu, sabia pouco dele pelas distâncias naturais da vida...

(Era uma pessoa respeitadíssima
na profissão universitária que exercia...)

mas nada de mau supunha.

Uma semana antes da data do cheque, sem qualquer aviso, ele deixou-me no consultório um envelope com cinquenta contos em notas.
Falou com a empregada cheio de pressa e pediu desculpa da rapidez da passagem, nem procurando contactar-me...

(Se colocasse o cheque
no banco,
o vigarista seria eu…)



e sabendo-me, obviamente, incapaz de o prejudicar.


Rasguei o cheque, esperei por melhores dias, continuei a admirar-lhe a inteligência e a perspicácia, candidamente entendendo e desculpando.
Nunca mais nisso falamos, nas breves ocasiões em que posteriormente nos vimos.
Também nunca tive coragem de por qualquer outro meio lho referir e nunca o contei a ninguém, por eterno respeito ao meu amigo de sempre...

(No Céu não existem números
nem papeladas de contas,
existem amigos antigos
em cordiais distensões...)

que morreu pelos cinquenta, poucos anos depois.