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BAIÃO CANAL - Jornal

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SOCIEDADE | Escutei o episódio que... | Natércia Teixeira

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Escutei o episódio que relato, numa daquelas esperas solitárias em que o tempo disponível nos permite dar atenção a vidas que não são nossas.
Pelas circunstâncias, fazia horas dentro do carro.
A janela semiaberta permitia a entrada de uma voz que me prendeu a atenção, pelo timbre… altiva, fria, ríspida.
“… apenas pretendo saber o montante de Outubro a Dezembro.”
Outra voz, baixa, titubeante juntou-se-lhe.
“… fiz mensalmente pagamentos de 30 euros…tenho os comprovativos…”
“… o montante se faz favor…”

Movi-me instintivamente no banco, aquela arrogância patológica, para quem estar numa qualquer posição de superioridade é salvo conduto para vexar o outro, incomodou-me ao ponto de não encontrar uma posição confortável no assento do meu próprio carro.

No silencio da ausência de resposta, via um rosto confuso que imaginava, humilde.

A voz áspera e impaciente elevou-se um pouco mais e arranhou-me os tímpanos, ou talvez a alma não sei, mesmo não sendo a mim que se dirigia.

“diga o montante!”

Silêncio…imaginava o espanto da voz modesta…talvez a confusão…talvez a incompreensão.

Surpreendeu-me a calma da entoação, a simplicidade das palavras:
“…30 euros de Março a Dezembro, dez meses, são 300 euros.”

A voz altiva arremessou um “obrigado” e eu fechei a janela do carro.

Olhei o relógio e desejei saber queimar tempo…nunca aprendi, só consigo fazer horas… horas como estas em que me consumo a pensar que educação não é instrução, não são boas maneiras ou regras de etiqueta… que empatia pode ser trabalhada, mas é inata.

Num mundo em que somos avaliados pelas posses, em que tudo é cobrado e moeda de troca para uns poucos idealistas, ainda vale o que cada um é pela essência e boa índole…ainda prevalece a convicção que o fato que se veste é menos importante que a atitude que se tem, que o cargo que se ocupa não define o caracter de ninguém.

Tento desenhar mentalmente, os personagens donos das vozes que escutei, mas não sou capaz…olho novamente o relógio…não tenho mais horas para fazer.

Fora do carro olho em redor… é-me impossível identificar o local de onde aquelas vozes sem rosto procederam…acabavam ali as minhas divagações.

Quanto a conclusões ocorre-me uma…andar sempre com uma calculadora na mala…a probabilidade de nos cruzarmos com palermas é elevada, uma vez que são muitos e convém estar prevenida.

Natércia Teixeira