HÁ UMA LUZ PURA CIMEIRA | livro “Alípio de Freitas – Palavras de Amigos”. texto enviado por: Paulo Esperança vídeo: Couple Coffee exclusivo: Baião canal
Olá, Comandante: escreve a Lambida… sabes bem quem sou - ou fui - e estou aqui para te lembrar que me deves a vida… e a tua vida de combate!
Não quero ser presunçosa... mas os teus e as tuas amigas têm-te por perto, aprendem e discutem contigo… porque eu apareci na tua vida!
Como me conheceste bem… sabes que sempre fui muito convencida e feliz, apesar daqueles tempos no Brasil de miséria, repressão e morte.
Os cães da minha zona de influência não me resistiam. Mas os humanos como tu, ou o meu dono, o António, também não!
Bastava eu abanar o rabo ou a pestana e logo vinham todo(a)s, carinhoso(a)s, fazer-me umas festinhas à procura de mimos e lambidelas.
Consegui sempre afeiçoar-me à gente que passava lá por Goiás. Gente clandestina a quem o meu dono dava guarida sem nada perguntar, que vinha pela noite, partia escondida, vinha meses mais tarde, ficava um dia ou dois e desaparecia de novo sem eu saber porquê.
E eu ficava sempre com saudades de vocês todo(a)s, à espera de vos reencontrar com um osso ou um bocado de arroz que traziam no vosso bornal.
Mas a vida é a vida: a idade foi avançando, comecei a ficar doente. Vivi mais ou menos bem com isso até que comecei a fraquejar.
Mas tu não fraquejaste! Escreveste no “Resistir é Preciso” sobre a tua prisão e as primeiras sessões de tortura: Senti o meu fim próximo e alegrei-me. Uma alegria calma e serena de quem parte por vontade própria. A alegria do combatente que deixa o campo de batalha depois de, em luta desigual, ter derrotado a soberba dos inimigos. Assim eu partia.
Mas não partiste porque quando percebeste que não ias morrer, decidiste resistir.
Eu, porém, tive de partir. O meu amigo António viu bem que eu estava em muito sofrimento. Não teve coragem de me aliviar da dor.
Chegaste, como sempre cúmplice, altivo, sereno. Ele não perdeu tempo: pediu-te para me ajudares.
A tua pistola, sussurravas com os teus botões, era demasiadamente cruel para me mandar em paz.
Por isso, deste-me a tua cápsula de cianeto dissolvida em água com rapadura… e assim me fui sem agonia!
Quem é que se lixou? Tu! Não tiveste tempo de ir buscar uma outra ao farmacêutico do Rio de Janeiro que colaborava com a tua organização…e foste preso.
Ainda bem que não tiveste esse tempo! Hoje os teus amigos e as tuas amigas podem, por isso, comer umas picanhas, um feijão preto e celebrarem o quanto gostam de ti.
Sabes, Comandante... aqui por onde ando disseram-me que o teu Irmão Zeca Afonso, quando esteve preso em Caxias aí em Portugal, escreveu um poema chamado “Há uma Luz Pura Cimeira”.
É isso, Comandante… continuo a sentir-te como uma luz, pura e cimeira.
Por aqui, também ouvi dizer que há oito milhões de anos que a visão humana tem a capacidade de fazer a transdução da luz em sinal neurológico - e por isso vemos. O olho humano foi para lá da perfeição e tem características ímpares.
Comandante: tu já estás para além disso - já não precisas disso - porque és uma Luz, Pura, Cimeira.
Lambidelas muito carinhosas,
Lambida
Outubro de 2016
Arquivo
Texto escrito em Outubro de 2016 (baseado em factos reais) em nome da cadela “LAMBIDA” , do António de Goiás, amigo do Alípio, para o livro “Alípio de Freitas – Palavras de Amigos”. Alípio de Freitas nasceu em Bragança a 17 de Fevereiro de 1929 e partiu para a constelação da utopia 13 de Junho de 2017.
texto enviado por: Paulo Esperança
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