Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

BAIÃO CANAL - Jornal

BAIÃO CANAL - Jornal

DUAS DE LETRA - Lourdes dos Anjos | As Carquejeiras | c/ video


Lourdes dos Anjos

Da Calçada da Corticeira à Rampa das Carquejeiras

Lembro-me muito bem delas, das carquejeiras.
Chegavam ao Bonfim no começo da manhã em grupos de três ou quatro
Vestiam de forma estranha. Traziam um xaile com duas pontas que se cruzavam sobre o peito e depois davam um nó nas costas. Amarrado na anca um outro xaile que prendia a saia de roda e lhe amparava o filho que trazia no ventre
Ao seu lado um outro filho uma criança que nunca aprendeu a conjugar os tempos e os modos do verbo BRINCAR e que carregava uma cesta com ovos e limões para vender pelas portas que se abriam
Nos pés descalços uns trapos sujos e muitas vezes ensanguentados para se dizerem magoadas e assim enganar os polícias que aparecessem para as autuar por andarem descalças na cidade.
Claro que vos falo das carquejeiras que iniciavam a sua dolorosa peregrinação na margem direita do Douro, onde a carqueja era descarregada dos barcos rabelos, até às padarias da minha rua do Bonfim: a Santa Clara (que ainda resiste nas mãos da família Coelho), a Padaria Industrial (que deu lugar á vidraria “Carvalho”) e ainda a uma outra no Campo 24 de Agosto, há muito fechada (que chegou a ser propriedade de um irmão da minha mãe.).
Sobre a cabeça, um saco de serapilheira em forma de capuz que as protegia dos picos dos molhos de carqueja seca presos por uma corda que seguravam na testa como humanas éguas de carga.
Não sei como conseguiam equilibrar a montanha que transportavam e vendiam AOS MOLHOS para espevitar a lenha e o carvão dos fornos das padarias , das casas de pasto das redondezas e também de algumas casas "ricas" da Av. Camilo , das ruas dos Duques ou de D. João IV. Em troca recebiam uns míseros trocos que talvez pagassem a malga de caldo da ceia dos filhos.
O caminho do calvário fazia-se subindo a rampa (a pique) da Corticeira, depois atravessavam as Fontainhas e subiam outra (menos íngreme) rampa dos Padeiros onde, com alguma sorte, aliviavam parte da pesada carga
Seguiam-se a Rua do Bonfim e S. Roque da Lameira até á Praça das Flores.
Finalmente, era o regresso e o descanso na escadaria da Igreja do Bonfim para comerem um naco de carne gorda e a broa que traziam no bolso do avental de estopa que as abrigava do frio, da chuva e também do calor dos dias de verão para que o suor não lhes “cortasse” as coxas .
Eram as carquejeiras. Eram as heroínas que conheciam os nomes dos pássaros da Praça da Alegria, das peixeiras que apregoavam o nevoeiro e o mar que traziam nas canastras e até dos guarda noturnos que terminavam o seu trabalho na madrugada e com elas se cruzavam em S. Lázaro, ao cimo da Rua das Fontainhas ou no Largo do Padrão.
Eram as mulheres-ouriço que assustavam as meninas de batinha branca que, pelas nove horas entravam na escola do Campo 24 de Agosto levadas pela mão da "sopeira " de avental colorido e alma virgem de letras e números que só conhecia mesmo a porta desse lugar mágico onde as letras tinham nome e lugar marcado.
Lembrar as Carquejeiras é escrever um hino à coragem, ao amor e à abnegação das Mulheres que ajudaram a escrever a História do Porto e do Douro.
Também com ELAS aprendi lições de VIDA que me ajudaram a crescer e a tentar SER FELIZ.
 
 
 
AS CARQUEJEIRAS .
Amarrava na anca a dor de parir
no peito guardava o amor a florir
ás costas carregava o nascer do fogo
trazia o Douro correndo nas veias e
inventava margens em tempo de cheias
Trepava a escarpa pra chegar à cidade
escondia os pés em trapos rasgados
vendia seus passos no calvário da rua
sobre as pedras vestidas da miséria nua
Guardava na boca o cheiro a pão quente
prometia fartura ao filho abrigado no ventre
escondia o rosto no saco de serapilheira
e fazia do seu corpo uma besta carrejona
Sabia de cor cada janela que se abria
chamava pelo nome os pássaros que ouvia
com eles repartia o seu naco de broa
sonhava o sol em cada negra madrugada
e rezava aos santos uma prece praguejada
Na margem do Douro, os rabelos pariam
as dores de viver que nelas cresciam
Construíam montanhas de carqueja
com ela fizeram armas, sonhos e suor
lágrimas, escravatura , sustento e amor
e iam queimando o fogo da vida em cada dia
Elas foram mães, santas mães como Maria
foram mulheres, amantes e guerreiras
e deram o nome á Rampa das Carquejeiras
 
Lourdes dos Anjos
 

Video RTP

 

1 comentário

Comentar notícia