Aprendi , a olhar os carros elétricos cheios de operários pendurados nas portas para fugir ao pagamento dos 12 tostões do bilhete e percebi bem cedo que ali,dentro daquela casa cheia dos silêncios e do amor dos meus pais, havia um muro que se saltava e dava fuga para o bairro Higiénico ou para o Canto do Rio, em Fernão de Magalhães, sempre que a PIDE aparecia fora de horas para levar alguém para o "hotel" da rua do Heroísmo. Não se diziam nomes nem razões, apenas se dava força aos homens do "reviralho" que desafiavam os poderes religioso ou político
Foi a primeira IPSS que conheci .Foi o meu berço, o meu acordar, o abraço firme da Nobre Gente da minha cidade.
Lá dei os primeiros passos e aprendi a correr para uma outra IPSS, mais distante, no lugar do SENHOR DO TERÇO, em Salreu, a casa dos meus avós, do MANUEL LOBO onde os marinhões que vendiam lenha e pinhas, ou o mendigo João da Nanaita recebiam sempre um naco de broa e um pedacito de carne gorda para a merenda.Onde o carteiro, o Alberto Antão o "CALDO QUENTE " que carinhosamente me chamava cachopa tripeira , bebia uma malga de água fresca com uma colherada de açúcar amarelo em tardes escaldantes de verão.Onde as filhas do ZÉ DA SERRANA e a MARIA PEQUENA gostavam de beber o café de mistura feito numa cafeteira brilhante como prata, divorciada das brasas da lareira e apaixonada pelo senhor fogareiro a gás, enquanto ouviam, "SIMPLESMENTE MARIA", um rádio teatro que parava o nosso mundo de então.E até quando o MANEL "QUERES CARNE" andava fugido da vergasta da mãe, a TI CELESTE PEQUENA, também havia para ele abrigo e mesa. Não esquecendo também o padre ANTÓNIO FERRUGEM que aí procurava o sorriso e o abraço da minha avó ou o baralho das cartas do meu avó para jogarem à bisca dosnove ou ao burro
Duas casas, duas instituições de solidariedade e paz onde me fui fazendo gente umas vezes rindo e muitas outras chorando ...mas sempre com o sonho de conseguir ser Livre e Feliz em tempos de servidão
Por isso gosto de vos contar coisas que vivi com as "dirigentes" dessas casas com as portas abertas para o mundo .
Duas ADELAIDES (mãe e filha), duas mulheres que, para mim, são imortais.
Da minha avó guardo o cheiro do cabelo, a cor dos olhos, os carinhos de uma mão áspera e doce, as palavras que me respondiam a cada pergunta que só a ela podia fazer e... ficavam entre nós , porque eram segredo só das duas.
Da minha mãe guardo, o olhar atento, a palavra muitas vezes azeda, a voz de comando , a lucidez duma mulher que desenhou caminhos e cruzou lugares de quase guerra para continuar a ser o orgulho dos netos que tanto amou .
Nos seus últimos anos de vida já não tinha a porta aberta para quem tinha menos que ela porque já temia a noite e não sabia se nasceria para ela um novo dia mas dizia que gostava de estar cá porque há muitos anos tinha feito com o meu pai um pacto de fidelidade e amor que tinha a certeza nunca se quebraria e portanto sabia que ele continuava a esperá-la numa qualquer porta de uma outra vida qualquer...
Duas casas.Duas Instituições Públicas de Solidariedade Social, que não sendo saudosista, são a minha enorme saudade.
Era na casa, na rua, com os vizinhos, com os catraios da outra rua que os novos cresciam e era com as mesmas pessoas que os velhos chegavam ao fim da linha de vida.SOCIALMENTE.SOLIDARIAMENTE.
Na minha casa, na casa que me abriga tento adormecer com paz na alma e a certeza que TODOS somos capazes de melhorar o mundo sempre que o nosso lar for ninho , os nossos passos seguirem pelos caminhos da fraternidade e as nossas palavras forem pedras que constroem novos caminhos para um país livre , verdadeiramente livre.
E ainda gosto de mim e gosto de ser este EU apesar de me desencantar este tempo badalhoco que me sufoca e contra o qual já não tenho forças para lutar
Os banqueiros construiram com os políticos do mundo , enormes,moderníssimas e fraudulentas" IPSS'S" sem alicerces humanitários e sem moral, onde se partilham os valores financeiros feitos com os dinheirinhos de quem trabalha e depois se aplicam em paraísos onde os imperadores adormecem á sombra das bananeiras, rodeados de meninos e meninas que os vão entretendo como faziam os anões das cortes do rei sol .
Como mudou o mundo entre o tempo em que poucos sabiam o significado de democracia ou solidariedade e nem sequer sabíamos escrever INSTITUIÇÃO ou CONSTITUIÇÃO porque eram palavras com muitas sílabas...
Restam -nos IMPÉRIOS PORCOS E SELVAGENS construídos com os nossos silêncios e alguns votos onde os ditadores sem rosto, sem escrúpulos e sem nacionalidade retalham os braços daqueles que sonharam por inteiro, a LIBERDADE.
Talvez os mais jovens acordem numa madrugada dum mês qualquer e sejam capazes de semear por aí as rosas perfumadas que uma rainha escondeu no seu manto onde havia o sonho de pão e paz para os PORTUGUESES.
Lourdes dos Anjos