Odete Souto | A escola e os sujeitos aprendentes (arquivo)
Na minha habitual crónica quinzenal regresso à escola, instituição que tem sido objeto de grandes parangonas por parte de “muitos/as entendidos/as” em matéria de apuramento de culpas, mas que, na minha humilde opinião, raramente colocam a análise na sua complexidade.
Quando falamos da escola devemos ter em conta que falamos de uma instituição de vida das crianças e dos/as jovens. Nesta perspetiva, tem que estar preparada para formar cidadãos/ãs e não pode ignorar dinâmicas que existem entre os/as alunos/as e as pessoas que os/as habitam, as suas histórias e as suas realidades. Da mesma forma, precisamos de ter a noção de que ninguém ensina ninguém, ninguém aprende sozinho, mas que todos/as aprendem beneficiando do papel da mediação que os/as outros/as podem exercer na nossa relação com o mundo. O património cultural não se transmite, ainda que seja objeto de apropriação, quer por via da influência deliberada ou ocasional dos/as outros/as, quer por via do processo de reinterpretação e de recriação do mesmo, por parte de cada um/a daqueles/as que vive esse processo de apropriação.
Cada escola está inserida num território com características próprias, quer em termos económicos quer em termos socioculturais.Cada comunidade escolar é específica e implica sempre uma abordagem ecológica e sistémica. No entanto, há documentos fundamentais que deveriam, a meu ver, ser objeto de estudo e fazer parte do curriculum, explícito ou não, de cada escola. São eles: Constituição da República Portuguesa, a “Convenção dos Direitos das Crianças”, a Lei de Promoção e Proteção e a Lei Tutelar Educativa. Da mesma forma, deveria ser do conhecimento de todos/as, o Projeto Educativo, o Regulamento Interno e do Estatuto do Aluno. São documentos fundamentais para a cidadania e, por isso, deveriam ter centralidade na escola e na formação. A criança/aluno só se pode implicar no seu projeto de vida integrando a escola, a aprendizagem e os saberes escolares, se criar relação de pertença, se a sentir como sua e se fizer parte dela. É um sujeito de direitos que deve sempre ser ouvido naquilo que diz respeito à sua vida e esta audição tem que ser informada, consentida e com sentido.
As crianças e os/as jovens são atores sociais, produtores/as de cultura e devem participar ativamente nas instituições que integram, sejam elas a família, a escola ou outras a que pertençam, numa perspetiva democrática e emancipatória. Por esta razão, para além da partilha das diferentes culturas dos/as alunos/as, esta educação requer uma atenção acrescida dos/as professores/as e restantes agentes educativos aos processos de desenvolvimento e às formas de manifestação de preconceitos e discriminações, de riscos e de perigos a que estes/as possam estar expostos e/ou se exponham, e à implementação de estratégias e metodologias adequadas que reduzam esses sentimentos e atitudes. Da mesma forma, é importante agir com firmeza sempre que os meios ao dispor se tenham esgotado e o desvio de comportamento e atitude se mantenham e, se necessário comunicar à Comissão de Proteção de Crianças e Jovens com competência territoriale, se de crime se tratar cometido por jovem maior de 12 anos e menor de 16, ao Ministério Público, para efeitos de processo tutelar educativo.
Não é de certeza impondo, coagindo, não dando o espaço necessário para dialogar, contratualizar, partilhar, construir e integrar que se consegue formar, no sentido de assimilar e criar relações de pertença. Não é desprezando os contextos informais e não formais da educação que se consegue conferir condições de igualdade de oportunidades de acesso e de sucesso. Não é comparando o que é incomparável. Uma escola que assim se organiza inscreve-se num padrão de seleção, de segregação e de exclusão. A comunicação é coartada e a linguagem dos afetos, aquela que mais transmite, que mais comunica e que mais forma, não tem possibilidade de ser implementada. A empatia esbate-se e os processos de delinquência, sexismo, bullying, assédio, ganham corpo e dimensão.
De alguma forma a escola criou o/a aluno e o/a aluno/a desalojou a criança e o/a jovem, negligenciou a pessoa que habita esse aluno/a/pessoa. O/a aluno/a é considerado/a como aprendente, muitas vezes reduzido/a a um papel absolutamente passivo, entendendo-o/a como recetáculo de saberes e competências. Ignora-se, assim, a vida que entra na escola, com a criança e a cegueira impera. Não é possível ensinar nada a quem não está disponível para aprender e se estivermos em presença de alguém maltratado, de crianças em perigo, nunca conseguiremos, nesta postura, perceber sinais, ouvir os gritos silenciosos que tantas e tantas vezes dão sem que ninguém os ouça, e a escola está condenada ao insucesso em toda a linha.
A relação pedagógica é uma relação interpessoal, atenta, implicada e comprometida entre pessoas com diferentes papéis. E nesta perspetiva, somos todos/as sujeitos aprendentes.
Aos “especialistas especialmente especializados” que debitam em grandes parangonas as culpas sobre escola e a educação, desafio-os/as a virem passar um dia apenas, em algumas escolas e algumas salas de aula. Também seriam sujeitos aprendentes.
Maria Odete Souto