Natércia Teixeira | Esta é a história da Samoa, de seu nome.
Consta que faz hoje três anos que conheceu o mundo…à primeira vista um lugar sombrio, pouco acolhedor e de gente nada confiável, que lhe usurpou o afeto, lhe tirou o sustento e só não lhe roubou a vida, porque a sorte não o ditou.
A Samoa foi encontrada num contentor do lixo para os lados de Tavira, única sobrevivente de uma ninhada lá depositada.
Foi-me contado que um Senhor da recolha do lixo encontrou-a, compadeceu-se dela e entregou-a no canil municipal, salvando-lhe assim a vida.
Por lá terá vivido algum tempo, até lhe terem arranjado uma família de acolhimento.
Nasceu forte, herança genética de dobermann e teimosa por personalidade própria.
Essas características e provavelmente a falta de vocação e devoção das pessoas da FAT , chocaram com o temperamento enérgico e reativo de uma dobie no inicio da vida, o que a atirou para o confinamento e solidão de um cadeado com pouco mais de um metro.
Diz-se que passou a gozar de reputação de agressiva e diz-se também que se entendeu que a sua educação e disciplina passaria por uns mimos com um pau de marmeleiro.
Tivesse-se a situação prolongado no tempo e teríamos provavelmente que enfrentar a raiva de um cão ferido, de corpo e alma.
A sorte esteve do lado dela, pela segunda vez na sua curta existência e a situação chegou ao conhecimento das pessoas certas.
Foi resgatada pela Associação Dobermanns em Risco.
Nunca me passou pela cabeça adotar um dobermann, nessa altura estava a ponderar a adoção de um pastor alemão, macho e adulto.
Confirmou-se que a Vida é o que acontece, enquanto estamos ocupados a fazer outros planos.
Não se concretizou a adoção do pastor alemão…o universo sabiamente também deve ter extraviado o formulário para adoção de um dogue alemão.
Responderam-me à candidatura que nunca supus obter resposta.
Lembro-me de no final do contacto, ficar a olhar para as fotos que me enviaram:
Tão linda!
Mas…uma cadela com pouco mais de seis meses? dobermann!
A minha gata, a Caju, olhava-me como se pressentisse o desastre, a mais velha, a Amêndoa, mantinha a tranquilidade que lhe é característica e que o tempo aprimorou, eu, do alto da minha ignorância que ás vezes é uma bênção, ajuizava que com um histórico de quatro adoções, nada me surpreenderia.
Ultrapassadas as formalidades, uns dias depois e trezentos quilómetros percorridos conheci pessoalmente aquela que se tornou o desafio canino da minha vida.
Encontrei-a entretida a chagar a paciência do cãopanheiro com quem partilhava o espaço, que pareceu visivelmente aliviado por lha tirarem da frente.
Cumprimentou-me tão alegremente e sem cerimónia que quase tombei.
Era maior do que supunha, mais forte do que aparentava e muito mais enérgica do que se consegue imaginar.
Fizemos os trezentos quilómetros até casa sem problemas, volta e meia vinha pousar a cabeça perto de mim, julgo que a tentar perceber o seu destino.
Chegada a casa, tudo era motivo de curiosidade…medo julgo que só teve de subir as escadas, o pavimento em cerâmica fazia-a escorregar e fez-lhe no primeiro dia um pouco de confusão. No segundo, descobriu uma técnica de correr e deslizar pelo pavimento em cima dos tapetes que assim se transformaram numa espécie de tapetes voadores.
Os primeiros dias foram de adaptação e conhecimento mútuo.
As semanas seguintes foram para consolidar a confiança.
Os meses após foram desafiantes, extenuantes e muitas vezes exasperantes.
Tinha em mãos uma jovem cadela dominante, intuitiva e condicionada por um início de vida atribulado que, o que lhe retirou em confiança, lhe acrescentou em tenacidade.
Durante o primeiro ano comigo a Samoa, para o padrão da idade, portava-se como um anjo em casa na minha ausência e como um demónio mal chegava eu.
Exigia atenção a 100% e mordia-me as mãos como forma de a conseguir.
Não sabia controlar a energia nem dosear a força.
Simplesmente não parava quieta um segundo e entendia que sendo eu o alvo do seu afeto, treinar full contact comigo era a forma certa de o demonstrar.
Perdi a conta às nodoas negras. Desisti de assistir a um filme do princípio ao fim, de ler ou escrever.
Fazer uma chamada telefónica de mais de dois minutos com ela a circular livremente pela casa, era uma guerra de nervos.
Morarmos num apartamento, não simplificava as coisas.
Os passeios diários servem para a socializar e para treino de marcha, mas são claramente insuficientes para a estimular e equilibrar energeticamente.
Temos a sorte de ter um amigo, fã de animais, com um espaço seguro e boa vontade suficiente para nos deixar usufruir dele, onde passamos a ir tantas vezes quantas me é possível.
Assim nasceu uma dobie adepta de duatlo.
Mais de dois anos decorridos de uma adoção que considero bem-sucedida, mas não fácil, a Samoa está hoje muito mais tranquila e equilibrada, única e peculiar em alguns aspetos, igual a todos os outros nos traços que lhe são característicos.
Desengane-se quem supõe que vai habitar o mesmo espaço físico de um dobermann e não ter constantemente um par de olhos a fita-lo e um nariz colado ao corpo;
Ir ao wc sem fechar a porta com o trinco e manter-se lá sozinho, deixa também de ser possível;
Estar-se sentado ou deitado e não ter uma cabeça de “chumbo” pousada em qualquer parte da anatomia, será outra coisa que não irá acontecer.
Também não irá acontecer perder o ar mal-encarado e o coração de ouro.
Espíritos fortes não podem ser quebrados, mas podem ser magoados.
O meu bem-haja à Dobie Hope e às pessoas de boa vontade que dela fazem parte, pelo espírito de missão, abnegação e defesa de cães de uma raça tantas vezes injustiçada.
Ajudam os de ninguém, os rejeitados e negligenciados.
Tratam-lhes das feridas do corpo e iniciam o processo de cura das suas almas. Reabilitam-nos para que tenham a oportunidade de serem integrados numa família que os estime, valorize e ame.
Dão hipótese a pessoas como eu, que não têm quintal, mas têm Amor.
O meu agradecimento pessoal a todos os envolvidos no resgate e recuperação da Samoa, em especial à Teresa e ao Rui, pela confiança.
À minha menina:
Dizem que depois dos três anos, ganhas juízo…teimosa como és, vais contrariar isso também.
Seja como for, gostava de te aturar até aos 30…teus, claro! maluca, saudável e feliz.
Parabéns Temoni, meu pedaço de loucura, devoção e amor.
Natércia R. Teixeira
2024/03/05