Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

BAIÃO CANAL - Jornal

BAIÃO CANAL - Jornal

Natércia Teixeira | Esta é a história da Samoa, de seu nome.

foto.png

Consta que faz hoje três anos que conheceu o mundo…à primeira vista um lugar sombrio, pouco acolhedor e de gente nada confiável, que lhe usurpou o afeto, lhe tirou o sustento e só não lhe roubou a vida, porque a sorte não o ditou.

A Samoa foi encontrada num contentor do lixo para os lados de Tavira, única sobrevivente de uma ninhada lá depositada.

Foi-me contado que um Senhor da recolha do lixo encontrou-a, compadeceu-se dela e entregou-a no canil municipal, salvando-lhe assim a vida.

Por lá terá vivido algum tempo, até lhe terem arranjado uma família de acolhimento.

Nasceu forte, herança genética de dobermann e teimosa por personalidade própria.

Essas características e provavelmente a falta de vocação e devoção das pessoas da FAT , chocaram com o temperamento enérgico e reativo de uma dobie no inicio da vida, o que a atirou para o confinamento e solidão de um cadeado com pouco mais de um metro.

Diz-se que passou a gozar de reputação de agressiva e diz-se também que se entendeu que a sua educação e disciplina passaria por uns mimos com um pau de marmeleiro.

Tivesse-se a situação prolongado no tempo e teríamos provavelmente que enfrentar a raiva de um cão ferido, de corpo e alma.

A sorte esteve do lado dela, pela segunda vez na sua curta existência e a situação chegou ao conhecimento das pessoas certas.

415914794_10226630596665616_6350392351526399083_n.

Foi resgatada pela Associação Dobermanns em Risco.

Nunca me passou pela cabeça adotar um dobermann, nessa altura estava a ponderar a adoção de um pastor alemão, macho e adulto.

Confirmou-se que a Vida é o que acontece, enquanto estamos ocupados a fazer outros planos.

Não se concretizou a adoção do pastor alemão…o universo sabiamente também deve ter extraviado o formulário para adoção de um dogue alemão.

 Responderam-me à candidatura que nunca supus obter resposta.

Lembro-me de no final do contacto, ficar a olhar para as fotos que me enviaram:

Tão linda!

Mas…uma cadela com pouco mais de seis meses? dobermann!

A minha gata, a Caju, olhava-me como se pressentisse o desastre, a mais velha, a Amêndoa, mantinha a tranquilidade que lhe é característica e que o tempo aprimorou, eu, do alto da minha ignorância que ás vezes é uma bênção, ajuizava que com um histórico de quatro adoções, nada me surpreenderia.

Ultrapassadas as formalidades, uns dias depois e trezentos quilómetros percorridos conheci pessoalmente aquela que se tornou o desafio canino da minha vida.

Encontrei-a entretida a chagar a paciência do cãopanheiro com quem partilhava o espaço, que pareceu visivelmente aliviado por lha tirarem da frente.

Cumprimentou-me tão alegremente e sem cerimónia que quase tombei.

Era maior do que supunha, mais forte do que aparentava e muito mais enérgica do que se consegue imaginar.

Fizemos os trezentos quilómetros até casa sem problemas, volta e meia vinha pousar a cabeça perto de mim, julgo que a tentar perceber o seu destino.

Chegada a casa, tudo era motivo de curiosidade…medo julgo que só teve de subir as escadas, o pavimento em cerâmica fazia-a escorregar e fez-lhe no primeiro dia um pouco de confusão. No segundo, descobriu uma técnica de correr e deslizar pelo pavimento em cima dos tapetes que assim se transformaram numa espécie de tapetes voadores.

Os primeiros dias foram de adaptação e conhecimento mútuo.

As semanas seguintes foram para consolidar a confiança.

Os meses após foram desafiantes, extenuantes e muitas vezes exasperantes.

Tinha em mãos uma jovem cadela dominante, intuitiva e condicionada por um início de vida atribulado que, o que lhe retirou em confiança, lhe acrescentou em tenacidade.

Durante o primeiro ano comigo a Samoa, para o padrão da idade, portava-se como um anjo em casa na minha ausência e como um demónio mal chegava eu.

Exigia atenção a 100% e mordia-me as mãos como forma de a conseguir.

Não sabia controlar a energia nem dosear a força.

Simplesmente não parava quieta um segundo e entendia que sendo eu o alvo do seu afeto, treinar full contact comigo era a forma certa de o demonstrar.

Perdi a conta às nodoas negras. Desisti de assistir a um filme do princípio ao fim, de ler ou escrever.

Fazer uma chamada telefónica de mais de dois minutos com ela a circular livremente pela casa, era uma guerra de nervos.

Morarmos num apartamento, não simplificava as coisas.

Os passeios diários servem para a socializar e para treino de marcha, mas são claramente insuficientes para a estimular e equilibrar energeticamente.

Temos a sorte de ter um amigo, fã de animais, com um espaço seguro e boa vontade suficiente para nos deixar usufruir dele, onde passamos a ir tantas vezes quantas me é possível.

Assim nasceu uma dobie adepta de duatlo.

Mais de dois anos decorridos de uma adoção que considero bem-sucedida, mas não fácil, a Samoa está hoje muito mais tranquila e equilibrada, única e peculiar em alguns aspetos, igual a todos os outros nos traços que lhe são característicos.

Desengane-se quem supõe que vai habitar o mesmo espaço físico de um dobermann e não ter constantemente um par de olhos a fita-lo e um nariz colado ao corpo;

Ir ao wc sem fechar a porta com o trinco e manter-se lá sozinho, deixa também de ser possível;

Estar-se sentado ou deitado e não ter uma cabeça de “chumbo” pousada em qualquer parte da anatomia, será outra coisa que não irá acontecer.

Também não irá acontecer perder o ar mal-encarado e o coração de ouro.

Espíritos fortes não podem ser quebrados, mas podem ser magoados.

O meu bem-haja à Dobie Hope e às pessoas de boa vontade que dela fazem parte, pelo espírito de missão, abnegação e defesa de cães de uma raça tantas vezes injustiçada.

Ajudam os de ninguém, os rejeitados e negligenciados.

Tratam-lhes das feridas do corpo e iniciam o processo de cura das suas almas. Reabilitam-nos para que tenham a oportunidade de serem integrados numa família que os estime, valorize e ame.

Dão hipótese a pessoas como eu, que não têm quintal, mas têm Amor.

O meu agradecimento pessoal a todos os envolvidos no resgate e recuperação da Samoa, em especial à Teresa e ao Rui, pela confiança.

À minha menina:

Dizem que depois dos três anos, ganhas juízo…teimosa como és, vais contrariar isso também.

Seja como for, gostava de te aturar até aos 30…teus, claro!  maluca, saudável e feliz.

Parabéns Temoni, meu pedaço de loucura, devoção e amor.

 

Natércia R. Teixeira

2024/03/05