MARIA ODETE SOUTO | Da vida, do amor e da morte.
A minha reflexão de hoje vai direitinha para a minha Mãe que nos deixou no passado dia 8. Não permitiu a sorte que chegasse ao dia 6 de dezembro para completar 95 voltas ao sol. Partiu antes, serena, com uma vida bem cumprida. Deixou um vazio enorme, mas excelentes memórias que nos ajudarão a preencher este vazio.
A minha Mãe, era um gigante, uma força da natureza a quem a vida foi sempre muito complicada, mas que, sem lamentos, sempre a enfrentou de sorriso aberto e com determinação. Era frequente ouvi-la dizer “vence na vida quem quer” ou agora, quando recontava episódios, “a vida foi difícil, mas, juntos, vencemos”. Ela uma lutadora e a ela devemos tudo aquilo que somos.
A Senhora Carolina foi a Mãezinha de muitas pessoas. Pela casa da minha Mãe foi criada muita gente, mesmo no tempo em que escasseava tudo. Menos amor e entrega.
Era uma pessoa extremamente inteligente.E culta. Tinha só o 3º ano de escolaridade porque teve que trabalhar para ajudar a sustentar a família. Mas lia imenso. E discutia aquilo que lia. Era sábia.
As suas marcas começaram a ser deixadas logo na adolescência, quando ia a pé, de cesto de laranja à cabeça, durante a noite, de Guimarei até à vila, agora cidade de Santo Tirso, (5/6 quilómetros), para vender a laranja, logo ao amanhecer para logo regressar pois tinha de trabalhar. Foi, desta forma, que comprou, à peça, o serviço de loiça que ainda hoje lá está. Mas, sobretudo, a cama e uma coberta. E como ficou feliz quando o irmão adoeceu e foi preciso um médico vir a casa. Tinha uma cama decente.
Era uma pessoa alegre, muito ativa e ligada à comunidade. Ainda adolescente leu muito, às escondidas.E fez teatro, na pequena freguesia de Guimarei.
Casou e foi feliz. Eram agricultores e tinham um moinho, onde trabalhavam de noite. Mas, quis a sorte que esta união fosse abruptamente interrompida. A 7 de novembro de 1966, um acidente com os bois, em casa, ceifou a vida ao meu pai. E lá ficou a Carolina, com 9 filhos nascidos e grávida. Tinha39 anos e 10 filhos para criar.
Mas esta heroína não cruzou os braços. Tinha muitas bocas para alimentar e nem o abono de família. Não tinha rendimento. Mexeu-se como ninguém e, no dia 1 de janeiro de 1967, dois dias depois do nascimento do meu irmão, abriu um posto de recolha de leite, onde trabalhava 2 horas por dia. Não era tanto pelo ordenado, mas foi a forma de conseguir abono de família para os filhos.
E vendeu adubos, pesticidas, herbicidas. E continuou com o moinho, com a agricultura, e fez projetos, partilhou-os e realizou-os. E vencemos na vida, dizia a ela.
Foi um poço de amor e generosidade. Sempre se deu aos outros e ajudou, sem olhar a quem.
Na nossa casa criava-se e matava-se o porco. Era a carne que se consumia. Os salpicões eram para oferecer e/ou para dias especiais; o presunto para as vindimas, e o restante para o governo da casa. Comia-se carne à quinta-feira e ao domingo. Mas havia outra gente necessitada e lá dizia a mãezinha a um dos filhos: “vai levar esta carne à Sra. A. que também tem 10 filhinhos e passam mal”. Ou os pedintes que por lá passavam e lá comiam, daquilo que houvesse.
Era esta a generosidade que tinha e que assim continuou vida fora. Relembroo episódio do vizinho que queria construir casa, mas que não tinha terreno para fazer a entrada. A minha mãe lá sugeriu que se desse o terreno e assim foi feito. Ou a criança que nasceu e a quem deram o nome Beatriz, em homenagem à minha avó materna, e a mãezinha lá disse que podíamos dar-lhe “aquele alfinete de ouro que era da avozinha”. E assim se fez… E não, não éramos ricos. Tínhamos uma rica Mãe e isso bastava.
Era determinada, resiliente e firme, muito firme nas suas decisões. E foi-o na educação dos filhos. Malandrosquanto baste, só uma pessoa especial teria a capacidade de aceitar e gerir o crescimento e as tropelias de 10, que ainda por cima se davam bem. E traziam amigos, portugueses e estrangeiros, e a tudo a mãezinha se adaptava. E era amada e admirada por todos/as.
A mãezinha sonhava, fazia sonhar e foi assim que nos fez crescer gente. Com muito trabalho. Os filhos eram o seu orgulho. E os netos que tanto a afagavam e que ela adorava. E a bisneta que ela ainda teve ao colo. Era muito senhora da sua prole. Tinha um sentido de família incrível e sempre procurou saber a história da nossa família, lendo documentos antigos e procurando junto da Biblioteca ou pedindo a quem lho fizesse. Foi muito, muito à frente do seu tempo.
Liderou grupos locais de assistência, participou ativamente na comunidade, decidiu sempre da sua vida. Era apaziguadora. Velava pela harmonia de todos e partilhava as ideias, as dúvidas, a vida que sempre via pelo lado positivo. E era uma pessoa de fé, de uma fé inabalável.
Era uma delícia falar com ela. Sobre os livros e sobre a vida. Dizia-nos da sua felicidade, da gratidão à vida e a Deus. Rezava todos os dias. E partiu.
Numa das primeiras mensagens públicas que recebi, após a sua partida, estava escrito “Até um dia ti Carolina. Nunca esqueceremos o seu pão”. E veio-me à memória a broa que a minha mãe fazia e que tão apreciada era.
Foram imensas as pessoas que se quiseram despedir da Mãezinha. E foram muitas as que disseram que ela também era a sua Mãezinha, sua segunda mãe. Guimarei ficou de luto.
Um oceano de flores encheu a capela em que o seu corpo esteve depositado e que, depois, foram colocadas no cemitério, sobre a sua campa, pelo agente funerário. Revisitei o cemitério, numa comunhão de silêncios, de que necessitava, e do meio daquela montanha de flores emergia a pagela fúnebre, com a fotografia da minha mãe, sorridente, parecendo dizer, mais uma vez, “sabes, estou muito feliz”.
Com José Saramago, acredito que “aviagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam. E mesmo estes podem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativa”.
Num momento em que a dor da perda nos invade ficam as memórias, excelentes memórias, e o tributo à vida por nos ter dado a sorte de termos tido esta MÃE. Que imensa sorte tivemos, Soutos!
Maria Odete Souto