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Escolhi aquela mesa estrategicamente.
Dali avistava o mundo que desfilavaora atabalhoadamente, ora arrastando-se pelas pedras da calçada…isso ia-me distraindo da solitude.
Protegida de olhares curiosos como o meu, observava os rostos que apesar de familiares pertenciam a vidas que me eram absolutamente desconhecidas.
Bebericava o chá preto levemente açucarado…com o cuidado e o esmero que merecia a infusão de folhas do Ceilão em água fervente.
A música ambiente embalava-me o ócio…não o suficiente para me entorpecer os pensamentos.
Lá fora, a brisa desgrenhava as folhas das arvores que ainda se agarravam à vida e arrastava para a derradeira valsa, as que caídas na calçada, rodopiavam a seu capricho.
Vi-o passar no passeio em frente e por uma fração de segundo os nossos olhares cruzaram-se através do vidro.
Sustive a respiração pelo instante que o vislumbre durou.
Não me recordo há quanto tempo o conheço.
Seguiu caminho a rastejar os olhos pelo chão, vergado por anos devergonhas inconfessas que carrega nos ombros numa decadência autoinfligida…aparentementedistraído ou indiferente à minha presença.
Vejo-o afastar-se e não lhe reconheço o âmago…caminha meioencolhido e com um sorriso vago de quem disfarça a derrota ou de quem assume o desnorte.
Deixara de ser uma sombra do homem que fora, para se tornar no reflexo do que escolhera ser.
Recordo outros Outonos e lamento a pouca valia do tempo e esforço empreendidos no cultode uma imagem,aparentemente derrotada por uma mente malnutridaou pouco musculada.
Quis a sorte ou quisemos nós, manter-nos em lados paralelos da vida…as intersecções casuais serviram para nos avaliávamos e amiúde desapontar-me.
Seguiu com a vida a fomentar mexericos, alimentados pela clandestinidade de relações que mantinha camufladas com estratégias inúteis em meios pequenos, onde tudo se vê, se sabe e especula.
Soube há uns tempos que tinha finalmente assumido a concubina em casa…a Zona tinha-o atacado e nada como um bom achaque para forçar um homem a tomar decisões…isso e a idade que avançava e começava a tornar penosos os encontros furtivos e furtuitos.
Anos a suportar humilhações publicas, desrespeitos e desconsideração, tinham-na catapultado a outro patamar da sua aparente insignificância: a de criada de servir.
Anos partilhados na obscuridade que culminaram numa não menos obscura partilha de casa onde apenas era evidente o ostracismo a que o mundo os condenava e que eles próprios por diferentes motivos, aceitavam voluntariamente.
Disse-lhe uma vez que devia tratar bem a rapariga porque um dia só ela lhe restaria.
Na altura encolheu os ombros por descaso, despeito ou desconversa.
Recordo a última que tivemos…ácida…julgo que um amargo de boca para ambos.
Uma desconversa conclusiva.
Atirei-lhe à cara que não passava de um cobarde.
Esbofeteá-lo não teria causado maior impacto.
Não voltamos a falar e vê-lo nãoerauma satisfação.
- Laura…
A ausência de motivos de conversa fazia de nós dois estranhos e terá sido a estranheza estampada nos meus olhos que suscitou a questão:
- Não te lembras de mim?
A resposta pronta demais não disfarçou o ressentimento:
- Lembro…mas para mim és um assunto encerrado.
A verdade atirada assim de chofre surtiu o mesmo efeito que a surpresa da abordagem me causou.
Baixou os olhos, fixou um ponto imaginário e sem me encarar, continuou:
- Antes esquecido que mal lembrado!
Sem mais afastou-seem direção à porta do fundo por onde tinha entrado.
O tempo esbateu a mágoa, não o constrangimento de um dia a existência daquela pessoa ter sido importante para mim.
O logro destruiu o equívoco e a ilusão, não as memórias.
Chegado à porta voltou a cabeça na minha direção em jeito de despedida.
Mantive-me imóvel.
Acompanhei-o com o olhar até o perder de vista e concentrei-me no chá que esfriava na xicara… ele tinha razão, antes esquecida que mal lembrada.
In Grãos de Pimenta Rosa
Natércia Teixeira