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BAIÃO CANAL - Jornal

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Natércia Teixeira | In Grãos de Pimenta Rosa

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“O que for verdadeiramente importante tem de ir para o papel”

A frase martelava a cabeça de Laura.

A biblioteca, vazia àquela hora, impunha introspeção…o sol que se avistava da janela fazia adivinhar lá fora, um conforto que não sentia, apesar da climatização da sala.

Passara naquele local os melhores tempos da sua vida…ou talvez apenasaqueles que lhe deixaram lembranças que adornavam a memória.

Voltara ali para encerrar um ciclo.

Esquecer é humano e inevitável, seja por não ser significativo, seja porque o é em demasia…lembramo-nos do que fica nesse intervalo…lembramo-nos do que fica pelo meio.

Em cima da mesa, uma folha de papel em branco, uma esferográfica e uma antologia poética…no livro aberto serpenteavam palavras de Herberto Helder;

“No meio é bom-há uma coisa que se chama à volta.

Serve para estar bem só.”

Interrogava-se se queria esse lugar para si…refletia na dúvidade querer ser lembrada.

Sempre fora avessa a diários…sempre se recusara escrever apesar de o conseguir fazer.

Vieram-lhe à memoria os tempos de uma juventude que cada vez lhe parecia mais remota…como se já não lhe perecesse…ou nunca tivesse feito parte dela.

Nesses tempos escrevia…guardou anos as respostas aos escritos, até que um dia também elas lhe pareceram alheias e estranhas…rasgou uma a uma com o cuidado de quem arranca espinhos da alma.

Esqueceu as palavras eas dores…não os personagens que delas fizeram parte.

A dúvida persistia…desejava ser lembrada?

Apreciaria também ela tornar-se num personagem da vida de alguém…esquecida inevitavelmente pela insignificância ou pela perversidade?

O livro aberto ao lado da folha em branco, qual virgem na expectativa de uma história para contar, permaneciam à sua frente;

” Este lugar não existe” …. ou o poema do desassossego como ela o sentia.

O que for verdadeiramente importante, tem de ir para o papel…

E o que não o é vai para onde?

Esse lugar não existe.

A mão cuidada de Laura segurou a folha de papel em branco…olhou-a como quem observa um deserto…um lugar onde “o seu coração nunca mais dormiria” e rasgou-a com a violência de quem aniquila lembranças que se recusa perpetuar.

 

In Grãos de Pimenta Rosa

Natércia Teixeira