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BAIÃO CANAL - Jornal

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Um natal | Natércia Teixeira | O breu da noite...

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O breu da noite escurecia a sala apenas iluminada pela luz difusa do candeeiro da rua que atravessava o vidro da janela que escorria água e formava Ínfimos cursos que desaguavam na madeira enegrecida por Invernos rigorosos.

Do lado de fora da janela, adivinhava-se uma finíssima pelicula de gelo.

Enrolada no xaile olhava o velho relógio que marcava seis da tarde.

Era ainda muito cedo para os meninos chegarem e quando a viessem buscar o cheiro do carvão já teria desaparecido…a neta zangava-se com ela por causa da braseira, dizia que a podia matar…devia ter razão.

Ela raramente aparecia…trabalhava muito…era como a mãe.

Aquele dia fora um acaso…passou por perto e entrou.

Viu a braseira!

Disse que aquilo matava.

Devia saber do que falava…estudava…andava sempre a correr, sempre ocupada.

Andavam sempre todos muito ocupados.

A mãe nem se fala.

A neta disse que não queria mais ouvir falar de braseiras…ela sabia…era doutora, não sabia do quê…mas era alguém, isso é que importava.

Desde esse dia passou a acende-la às escondidas…não a queria aborrecer.

Não voltou a acontecer…ela não voltou a passar por lá perto.

Tinham-lhe oferecido um ventilador…tão bonito que até custava usa-lo.

Também não queria gastar muita luz…tinha escutado nas noticias que ia ficar mais cara…desde esse dia até ligava a luz mais tarde.

Claro que a filha e a neta não precisavam saber disso.

Iam zangar-se as duas.

Voltou a olhar o relógio que atravessou gerações…tinha sido dos seus pais…herdou-o quando casou…o relógio viu nascer a filha e viu ajuda-la a criar os netos.

Seis e meia da tarde.

Tinha passado a tarde a fazer sonhos…os meninos adoram e Natal sem sonhos, não é Natal.

Talvez os tivesse feito cedo demais…eles ainda iam demorar a chegar…trabalhavam muito.

Vinham busca-la.

Trabalhavam tanto que era um restaurante que ia fazer a ceia.

Agora já não se comia bacalhau cozido com couves…parece que era polvo e peru recheado.

Disseram que não queriam rabanadas…só bolo-rei de chocolate e os sonhos que voltaram a estar na moda.

Sacudiu o gato que teimava chegar-se tanto à braseira que ainda chamuscava os bigodes.

Era a sua companhia o velho gato…miou desagradado por se ver banido do aconchego das brasas e saltou-lhe para o colo.

Custava-lhe deixa-lo mas os meninos eram alérgicos ao pêlo.

Preocupava-a uma doença.

Todos trabalhavam tanto!

Acendeu o candeeiro da mesinha de apoio.

Pensou ler qualquer coisa para se entreter…teria gostado de ser professora.

Outros tempos…poucos recursos e o pai não achou esse gosto importante.

Olhou para a pequena estante com livros…sabia-os de cor…bastava-lhe recordar, assim também poupava os olhos e na luz.

Lia para os meninos quando tomava conta deles em pequeninos.

Um final de ano eles ficaram lá em casa.

Os pais iam ao réveillon…na verdade iam apenas jantar fora como das outras vezes que lhos deixavam.

Leu-lhes a história da Menina dos Fósforos.

A mãe aborreceu-se imenso…não queria os meninos traumatizados…as crianças eram sensíveis e Andersen estava ultrapassado.

O livro ostracizado passou a estar dissimulado por outros mais consentâneos com a sensibilidade vigente.

O carvão negro anunciava uma braseira extinta, o tique taque do relógio uma espera que se prolongava.

Com o ronronar do gato no colo, deixou-se adormecer.

No sonho acendia um fosforo e diante de si surgia uma sala perfeitamente iluminada.

À mesa, toda a família.

Os meninos rodeavam-na e pediam que lhes contasse histórias.

O fosforo que segurava entre os dedos parecia não se extinguir…iluminava tudo…aquecia o ambiente e o coração de todos.

 

O som estridente do telemóvel misturou-se com o burburinho da movimentada rua, que apesar do avançado da hora, continuava, devido aos preparativos para a festa da passagem de ano.

No visor apenas surgiu a palavra: “ Lar”

Com a irritação e sem dar conta que a chamada fora atendida, ouviu-se do outro lado:

Mas será possível?! Está uma pessoa assoberbada e é isto!

Martinha confirma por favor a viagem que vou atender a tua avó!

 

-Pode passar que eu falo com a minha mãe…

- Peço desculpa, mas não tenho boas notícias, a mãe da senhora faleceu esta noite…

Partiu calma. Encontramo-la sentada na poltrona de leitura com um livro de Andersen entreaberto nas mãos.

O silêncio caiu sobre a noite.

 

Ninguém nunca está absolutamente sozinho e por mais insignificante que pareça a luz, ela ilumina sempre a escuridão.

Boas Festas e cuidem de vocês e dos vossos.

 

Natércia Ribeiro Teixeira

Dez/2022

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