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BAIÃO CANAL - Jornal

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SOCIEDADE E CULTURA | Histórias avulso | Jaime Froufe Andrade

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(A pandemia pôs-nos à espera do futuro. Parados pelo vírus, talvez seja tempo para percebermos o que deixámos para trás. É essa a proposta de Histórias avulso)

A senhora de Alganhafres

Estamos em 1974. O 25 de Abril esturge. Minuto a minuto, chegam notícias de todo o país à Redacção de “O Primeiro de Janeiro”. De todo o país? Escassas são as de Trás-os-Montes. Isso causa-me estranheza.

Ligado a essa província por laços de família, quis ir até lá. O chefe é que não estava de acordo. Não se justificava uma reportagem. Mas fui. Meti uma semana de férias, e por lá andei uns dias. Pude então verificar: de facto, sinais do 25 de Abril quase só nas cidades e nas vilas. O chefe tinha razão.

O povo das aldeias consumia-se na labuta diária. Não dava para mais. Naquele tempo, por ali trabalhava-se de sol a sol, numa agricultura de subsistência. A guerra colonial e o salto - a emigração clandestina - levara os mais novos.

A busca leva-me a atravessar vários concelhos. Chego a Seixo de Ansiães, no distrito de Bragança. Uma cruz de pedra ao ar livre atrai-me a atenção. Tudo por causa de uma pichagem ainda fresca. Alguém insubmisso pintara a vermelho, na peanha do cruzeiro, uma palavra de ordem: Fascismo nunca mais. Esse grito silencioso mexeu comigo. Era indício seguro de que, afinal, o 25 de Abril já andava por ali.

Atrás da reportagem, chego a Alganhafres, também no distrito de Bragança. Sem ver vivalma, percorro a pé caminhos estreitos, medievais. Acabo por encontrar uma anciã. Vejo-a sentada nas escadas de pedra rústica de uma casa de loja e primeiro andar. O seu lenço e chaile negros irradiam, em torno de si, um luto pesado.

A velha senhora estranha a minha presença. Eu, um desconhecido com o cabelo em desalinho. Cautelosa, pergunta-me se venho do degredo. Sossego-a revelando-lhe as minhas raízes. Cito nomes de famílias da região, apelidos e alcunhas que sei de cor de tanto os ouvir à minha avó transmontana. Ela solta-se, mostra-se pronta para a conversa. Aproveita para mitigar a solidão.

Mostra-me, sem o exibir, os seus conhecimentos sobre as leis que regulam a natureza, os bichos e as plantas. Fala-me da chuva que tarda em chegar.

Antecipa-me, com assinalável detalhe, os danos que irão sofrer as culturas se não chover brevemente. E também os malefícios se cair dos céus água em demasia. Olha em determinada direcção, aponta um dedo, diz: «É dali que ela virá». Fala-me de realidades ligadas ao sol, à água, à terra, ao ar e ao arejo que são coisas diferentes. Mas eu disso não entendo. Acabo por mudar a agulha da conversa.

A situação inverte-se, Sobre o que se está a passar em Portugal a velha senhora nada sabe. O regedor passara por ali há dias e contara-lhe qualquer coisa. Mas confessa não ter entendido. Ri-se como forma de desculpa.

A campanha de dinamização do MFA não tinha ainda saído dos quartéis. À minha moda, fiz eu próprio uma improvisada sessão de esclarecimento. Dei o meu melhor, juro. Mas falhei. Não consegui suscitar naquela cidadã o mínimo interesse ou curiosidade pelo 25 de Abril. «Eu disso não entendo», reconhece em tom humilde. Assim se explicou a senhora de Alganhafres. Explicou-se a um ignorante que também não entende aquilo em que ela é sábia.

(“A gente não lê”, letra-poema de Carlos Tê, (*) revela de forma exímia o universo desta anciã. Outro documento precioso que explica também esta e todas as outras velhas camponesas de Portugal é a “Carta para Josefa, minha avó”, de José Saramago. (**)

(*) A Gente Não Lê

(**)  Carta para Josefa, minha avó

froufe.andrade@gmail.com 

Jaime Froufe Andrade (jornalista/escritor)