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BAIÃO CANAL - Jornal

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OBLIQUIDADES | Jaime Milheiro

Jaime Milheiro psicanalista

No mundo das ideias repetir é  calar. É expelir ecos sem som,  gemer   carretos sem canga, dissertar  textos sem dono.

Só pensando se existe.

Fui eterno até aos 60.

Quando percebi que morreria, dei por mim a escrever:

…. a  deixar no papel as minhas próprias ideias e conteúdos, desembrulhados nas noites brancas de insónia, racionalizados na manhã seguinte, elaborados à minha maneira…

…. reformulando quanto havia conhecido e recebido

… como quem  renasce, revive e recomeça

… numa  espécie de necessidade de renovar para  sentir e de reescrever para  continuar.

                                               (Na eternidade ninguém sabe ler nem escrever

                                               Só escreve quem sabe que vai  morrer

                                               Escrever artigos científicos não é escrever… )

Nessa escrita  fui tomando consciência do meu próprio sentimento de percurso e percebi melhor a minha própria relação entre passado e  futuro, embora também me tenha apercebido de misteriosas lacunas de observação e de marés de desproporção, sempre que procedia como se o presente não existisse e a história não tivesse acontecido.

Analisando tal atitude, pouco consciente, apercebi-me deste estranho paradoxo: recriando sentia-me mais jovem do que realmente era, remodelando supunha-me num mundo onde o tempo não decorreria, mas situava-me em rotundas sem saída. Retrocedia ao adolescente em descoberta quando desenrolava projectos trocistas e dinamismos provocatórios como se idade  não tivesse, ou caminhos afectivos e efectivos não houvesse percorrido, nem sentisse necessidade de percorrer.

Dei-me conta, afinal, daquilo que todos sabemos mas que tendencialmente omitimos quando negamos o fim: em tudo quanto fazemos, sonhamos ou inventamos, os outros participam e o alongamento continua.

Não era para mim que eu escrevia. Eu escrevia para eles, metade de nós são os outros, sem eles nem haveria história ou memória.

Agudamente percebi que, mesmo num total silêncio e num total isolamento, só  escreve quem leitores imagina: verdadeiros ou supostos, reais ou futuristas.

                                               (Só com os outros se pensa

                                               Só com os outros se existe

                                               Só com os outros se vive...)

Na vida, como no poker, ninguém joga solitário nem apenas com as cartas de mão.

Obrigatoriamente com os outros joga e com as  cartas que neles supõe.

Baião canal jornal(Arquivo)

 

JAIME MILHEIRO, psiquiatra e psicanalista, fez a sua preparação no Porto, Lisboa e Paris.

Humanizar e valorizar os factores psicossociais na Saúde/Doença foi a grande luta da sua vida profissional. Fundou o Centro de Saúde Mental de Vila Nova de Gaia num registo de Psiquiatria Comunitária. Fundou o Instituto de Psicanálise do Porto. Criou os «Colóquios do Porto: Psicanálise e Cultura». Foi Presidente do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos. Foi Presidente da Sociedade Portuguesa de Psicanálise. Foi Presidente do Conselho Nacional de Saúde Mental. Foi agraciado com: Medalha de Ouro do Ministério da Saúde, Medalha de Ouro do Município de V. N. de Gaia e Medalha de Mérito da Ordem dos Médicos.     

                                                                      

                                                                                                

 

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