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BAIÃO CANAL - Jornal

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Natércia Teixeira | O Voo do Pombo

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O Voo do Pombo

“…. Salvou-me aquela parede…granito polido, de um cinzento irisado, em que me apoiei.

Desacostumei-me rápido de ajuntamentos de povo barulhento e buliçoso, provavelmente porque em boa verdade nunca os apreciei e a euforia daquele corrupio de gente que desfilava na rua em frente, causava-me vertigens.

A parede em que me encostei, ajudou-me a ultrapassar a sensação de estar a resvalar à deriva, para lugar nenhum…salvou-me também de ser engolida por uma amálgama viva que menauseava…proporcionou-me momentaneamente algum enraizamento a um chão que parecia escapar-me debaixo dos pés.

Era chegada a hora de partir definitivamente daquele mundo…um sonho realizado que veio com uma fatura acima das minhas possibilidades, que hipotecava um valor reconhecido e criado a duras penas.

Um mundo que me tinha feito perder o sono…não desistir dele seria uma roleta russa onde não aposto, que a Vida não fosse a próxima fatura a chegar sorrateiramente à caixa de correio.

- Laura Antunes, Dra. -

Lembro-me ainda do sorriso de satisfação com que nos primeiros tempos admirava o meu nome desenhado naqueles caracteres estilizados.

Tenho presente os últimos em que olhava o próprio nome como se não me pertencesse.

É assim que morrem os sonhos.

São assim os epílogos de alguns propósitos.

Dificilmente alguma coisa sobrevive à ausência de respostas, raramente não se sucumbe ao caos das indefinições.

No dia em que as perguntas se tornam inúteis perdemo-nos de nós mesmos.

Nesse dia não haverá lágrimas suficientes que lavem a alma, nem encontraremos justificação em sentimento algum para a vergonha que todos os espelhos nos devolvem.

O contacto com a pedra fria, confortava-me…provavelmente porque as emoções que me visitavam eram incomparavelmente mais geladas.

Os pensamentos corriam velozes em contraste com a inércia que me acorrentava ao chão.

Um bater de asas despertou-me daquele torpor…um pombo pousara uns passos adiante de mim, saltitava à minha frente numa dança acompanhada de uns arrulhos melodiosos e com o bico fazia uma inspeção criteriosa ao pavimento em busca de uma qualquer migalha.

Detive-me a admirar aquela labuta e os matizes que pintavam as sedosas penas daquele animal…olhava-o e reconhecia-me nele nos últimos tempos… também eu, saltitante, esplendorosa, a entoar cantos de sereia e à cata de migalhas.

O pombo percebeu o interesse com que o observava e parou a escassos centímetros, também a observar-me, numa atenção curiosa que o fez comicamente, inclinar a cabeça numa interrogação muda quanto ao motivo da minha presença ali.

Uns segundos decorridos, sacudiu-se energicamente, disparou em minha direção e já em voo, passou tão perto que senti a deslocação de ar à sua passagem.

Pairou uns metros acima de mim, arrolhou ruidosamente erumou a horizontes que não me pertencem.

Segui a ave com o olhar, enquanto me foi possível.

Invejei-lhe a liberdade e o arrojo.

Um sussurro, como um sopro, sobrepôs-se a este pensamento…o que chamam de voz da consciência ou voz de Deus, impeliu-me a desencostar da parede e a mover-me em direção à saída daquele átrio.

Respirei fundo e sem olhar para trás nem me deter…misturei-me em contramão na multidão borbulhante que já não me podia queimar.

O meu pensamento pairava agora muito acima dali… ganhara asas e partia em busca de outros horizontes, omeu coração ansiava por novos propósitos.

In  Grãos de Pimenta Rosa

Natércia Teixeira