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BAIÃO CANAL - Jornal

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Jaime Froufe Andrade | Histórias avulso

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O velho da samarra

 

Em tarde de canícula, aconteceu-me, anos atrás, entrar no metro, na estação da Trindade, no Porto. Comigo, entrou um idoso. Homem mal ajambrado, com botifarras de outros tempos, grossa samarra e gorro enfiado na cabeça.

 

Já na carruagem, põe-se a olhar à volta, a conferir os passageiros, um a um. Uma trabalheira para os seus olhos sumidos. Acaba por se sentar num banco junto à porta. Viaja entre jovens despreocupados, turistas curiosos, gente de telemóvel na mão. Este universo avançado, tecnológico, de pegada digital, não é o seu. 

 

(Se Fialho de Almeida tivesse tido a hipótese de ver o velho da samarra, tê-lo-ia metido numa crónica. O autor de Os gatos não resistiria a esta apara humana de olhos sumidos e cerdas de animal bravio a sairem-lhe pelas orelhas.)

 

Como sou da idade do velho da samarra, farejo afinidades em torno da sua humílima figura. Aposto que ele andou também pelos quintos do Ultramar. Tal como eu, deve ter a cabeça povoada de mortos e aflitos. 

 

Aqui estamos agora, um diante do outro, depois de perigos e guerras esforçados. Mas ele mantém-se em guarda, como se o inimigo ainda pudesse aparecer. E, de facto, o inimigo aparece, surge na carruagem disfarçado de fiscal do metro. Latagão de ar determinado, logo inicia a conferência dos andantes dos passageiros. Um código de barras tatuado no pescoço inscreve-o nos dias de hoje. 

 

Entretanto, o metro vai perdendo velocidade até se deter. Abre-se a porta da carruagem. Com inesperado desembaraço, levanta-se o velho da samarra. Rapidamente se põe a mexer, porta fora. À passagem deixa recado: Dass… já não se pode andar nesta merda…

 

PS - Hoje, mais de meio século depois do início da guerra colonial, começam a chegar a casa daqueles que nela participaram o Cartão de Antigo Combatente, Título de Reconhecimento da Nação, conforme nele se pode ler. No verso do cartão vem exarada a Gratuitidade do passe intermodal dos transportes públicos das áreas metropolitanas e comunidades intermunicipais, regalia que, à data de hoje, ainda não está em vigor. Os velhos deste País de samarra e olhos sumidos vão ter de continuar atentos ao inimigo.

Jaime Froufe Andrade

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