Jaime Froufe Andrade | Histórias avulso | Não se pode ter tudo
Histórias avulso
(A pandemia pôs-nos à espera do futuro. Parados pelo vírus, talvez seja tempo para percebermos o que deixámos para trás. É essa a proposta de Histórias avulso)
Não se pode ter tudo
In illo tempore, a Primavera trazia-me sempre uma penhora. Foi assim durante uns anos. Quando o ofício da execução me caia nas mãos, a minha primeira reacção era fazer, mentalmente, um balanço aos meus bens. Começava sempre pelo inestimável: a mulher e os filhos. Como a família não é sujeito passivo de arresto, sentia-me aliviado.
Depois, virava-me para o recheio do lar. Os electrodomésticos, todos em fim de linha, escapariam de certeza à justiça do fisco; os livros, pela estranha razão de serem livros, também estariam a salvo. E o inventário mental à minha riqueza prosseguia: o periquito e a tartaruga seriam um estorvo para a autoridade tributária. Havia ainda a guitarra, essa vítima indefesa dos meus maus blues. Mas, de braço empenado, também nada interessaria ao fisco, ainda por cima longe de se saber ter sido nela que o amigo Carlos Tê compôs o Chico Fininho.
No ofício primaveril vinham exaradas ameaças terríveis: execução, penhora, arresto…, mas eu, um infractor, era tratado por V. Excelência. Tal tratamento enchia-me os olhos.
Tratava então de pagar a dívida, acrescida da eloquente maquia dos juros de mora. A contragosto acabei por ir às Finanças saber o que estava afinal a acontecer. Saber o motivo que levava esses serviços a enviarem-me um ofício de execução em vez de um atempado aviso de pagamento.
Vamos lá então ver o que se passa...diz o funcionário que me pareceu estar do meu lado. Ah, cá está… Pois é, no cadastro falta o seu número de contribuinte. Está a ver? E eu que visse.
Ao vivo, ganhei a questão, mas perdi a mordomia de ser tratado por V. Excelência. Não se pode ter tudo.
Jaime Froude Andrade