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BAIÃO CANAL - Jornal

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Histórias avulso | Jaime Froufe Andrade

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(A pandemia pôs-nos à espera do futuro. Parados pelo vírus, talvez seja tempo para percebermos o que deixámos para trás. É essa a proposta de Histórias avulso)

Ele bem a mereceu

Morremos, é um facto. Há quem pense tanto na morte que até se esqueça de viver. Mas também há quem se comporte como se fosse imortal. Temos ainda os que se ficam pelo meio termo. Valorizo quem encara o passamento com serena aceitação. Conheci um caso desses: Fernando Valle, médico, um dos fundadores do Partido Socialista.  

Durante a sua carreira clínica, tornou-se réplica de João Semana. Primeiro a cavalo, depois de carro, deslocava-se aos mais recônditos lugarejos da região onde vivia  para acudir a doentes. E quando verificava que o enfermo não tinha dinheiro para aviar a receita, ele tratava do assunto.  

A caminho dos 100 anos, acedeu a ser biografado pelo jornalista Fernando Madaíl. A obra avançou, ficou pronta. Faltava apenas a foto de capa. Disso se encarregou o fotojornalista Augusto Baptista. Tive a sorte de o poder acompanhar, na sua ida a Côja, Arganil, a casa onde viveu o Dr. Fernando Valle e que serviu também de refúgio a perseguidos pela Pide. Fomos recebidos pelo anfitrião com cordialidade e singeleza. Ele era assim.

Enquanto Augusto Baptista se ocupava a medir a luz e a estudar o melhor enquadramento, eu fui fazendo companhia ao médico. Mostra-me o último livro que o seu amigo Miguel Torga lhe tinha ido lá levar, evoca uma ceia de Natal passada ali com o poeta, deixa fugir o olhar pela janela e… remete-se ao silêncio. Recupera, diz pausadamente: «O Madaíl que se despache... com esta idade posso partir a qualquer momento...». A sereníssima tranquilidade com que fez o reparo  mostrou-me a virtude da aceitação.

Senti-me encorajado a fazer-lhe uma pergunta: homem de vida longa e rica, teria ele ainda algum desejo que gostasse de satisfazer? Era obviamente uma pergunta dirigida para o gosto de ainda poder ver a sua biografia. Olhou-me nos olhos, disse: Por acaso tenho... E a resposta veio: Gostava de ter aquilo a que o povo chama de uma morte santa. Gostava de morrer durante o sono...

Entretanto, Augusto Baptista mostra-se pronto para fotografar. Acerca-se de Fernando Valle, encaminha-o para o sítio que escolhera. Eu atrás, a ver. A sessão começa. Ouvem-se os sucessivos disparos da máquina, intercalados por breves ditos, sagazes e humorados, que o fotojornalista vai dirigindo ao fotografado. O fito é pô-lo à vontade, confortável perante a presença da objectiva. E consegue. A partir desse momento, estão criadas as condições para a captura de boas imagens. Depois é só escolher a melhor.Trabalho concluído, segue-se conversa amena, de circunstância, e depois a despedida.

Quanto à biografia Fernando Valle Um Aristocrata da Esquerda (1) não tardou a sair para gosto do biografado. Pouco depois, ele deixava-nos. Morreu a dormir.

 

Fernando Valle - Um Aristocrata da Esquerda | Âncora Editora

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