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BAIÃO CANAL - Jornal

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DUAS DE LETRA-lourdes dos anjos.

QUERO SER EU...

 

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Nasci e cresci em duas fabulosas IPSS. Na primeira, a que abrigou o meu berço, com lençóis de neblina bordados pelas mãos da Emilinha Viúva, (moradora na ilha do Esgazeado) e perfumados de doce e suave mimo.
Na casa dos meus pais, havia sempre lugar para quem quisesse trabalhar e respeitar os outros, sem perguntar o que fez ontem, mas querendo saber o que queria do dia de hoje e dos seguintes, onde se exigia respeito e se criavam os valores morais que me têm acompanhado pela vida fora; onde se respirava liberdade sem libertinagem e a palavra “patrões” tinha um significado quase fraterno.
Na casa onde nasci, conheci, sem nunca fazer perguntas, apenas alinhavando palavras e lágrimas e ficando com dúvidas que a vida depois se foi encarregando de tirar, dizia eu que conheci na casa onde nasci, mulheres matriculadas, mães viúvas sem pão para dar aos filhos, moçoilas enganadas pelos magalas seus namorados antes da partida para o ultramar, senhoras que viviam por conta de doutores ou industriais importantes e as quais eram o espelho do desafogo financeiro dos seus “amos”, esposas viúvas de homens vivos que as trocaram por mulatas dos “Brasis”, e muitas mulheres que para levarem o filho ao “senhor doutor médico” empenhavam a aliança, a cabeça da máquina de costura, o rádio ou o relógio de bolso do marido.
Sempre me ensinaram a viver com as diferenças e nunca me sentir mais ou melhor nesta roda onde girámos fazendo a vida.
Vi muitas vezes a minha mãe comer uma cabeça de carapau e dar a uma empregada um bife grelhado com batata cozida porque a doença por ali se passeava e "a patroa" queria que fosse assim.E a minha mãe sabia muito bem ser PATROA e ser GENTE
Sempre que as minhas roupas ou as dos meus sobrinhos deixavam de nos servir, iam, pela tardinha, quase escondidas, parar a algumas casas das ilhas do Bonfim onde quatro rapazes dormiam numa cama … dois para os pés e dois para a cabeceira; mais duas raparigas que partilhavam um divã desengonçado e estreito separado por uma cortina de “cretone” da cama do casal.
E HAVIA FESTA naquela casa modesta da ilha sempre que a menina do senhor Armindo batia á porta e entregava "uma coisa que a minha mãezinha mandou" ...
Aprendi , a olhar os carros elétricos cheios de operários pendurados nas portas para fugir ao pagamento dos 12 tostões do bilhete e percebi bem cedo que ali, dentro daquela casa cheia dos segredos e do amor dos meus pais, havia um muro que se saltava e dava fuga para o bairro Higiénico ou para o Canto do Rio, em Fernão de Magalhães, sempre que a PIDE aparecia fora de horas para levar alguém para o “hotel” da rua do Heroísmo.
Não se diziam nomes nem razões, apenas se dava força aos homens do “reviralho”, que desafiavam os poderes religioso ou político.
Foi a primeira IPSS que conheci. Foi o meu berço, o meu acordar, o abraço com a Nobre Gente Tripeira.
Lá dei os primeiros passos e aprendi a correr para uma outra IPSS, mais distante, no lugar do Senhor do Terço, em Salreu, a casa da meus avós, do Manuel Lobo, onde os marinhões que vendiam lenha e pinhas, ou o João da Nanaita recebiam sempre um naco de broa e um pedacito de carne para a merenda. Onde o carteiro, o Alberto Antão o “Caldo Quente” que carinhosamente me chamava cachopa tripeira , bebia uma malga de água fresca com uma colherada de açúcar amarelo em tardes escaldantes de verão. Onde as filhas do Zé da Serrana e a Maria Pequena gostavam de beber o café de mistura feito numa cafeteira brilhante como prata, divorciada das brasas da lareira e apaixonada pelo senhor fogareiro a gás, enquanto ouviam, “Simplesmente Maria”, um rádio teatro que parava o nosso mundo de então.
E até quando o Manel “Queres Carne” andava fugido da vergasta da mãe, a Ti Celeste Pequena, também sabia que ali havia para ele abrigo e mesa e silêncio absoluto. Não esqueço o jovem padre António Ferrugem que aí procurava o sorriso e o abraço da minha avó ou o baralho das cartas do meu avô para jogarem à bisca ou ao burro.
Duas casas, duas instituições de solidariedade e paz onde me fui fazendo gente. Por isso gosto de vos contar coisas que vivi com as “dirigentes” dessas casas de acolhimento com as portas abertas para o mundo . que nunca receberam "ajudas ou subsídios estatais"
Duas Adelaides (mãe e filha), duas mulheres que, para mim, são imortais. Da minha avó guardo o cheiro do cabelo, a cor dos olhos, os carinhos de uma mão áspera e doce, as palavras que me respondiam a cada pergunta que só a ela podia fazer e… ficavam entre nós , porque eram segredo só das duas. Duas Instituições Públicas de Solidariedade Social, que não sendo saudosista, são a minha enorme saudade.
Era na casa, na rua, com os vizinhos, com os catraios da outra rua que os novos cresciam e era com as mesmas pessoas que os velhos chegavam ao fim da linha da vida… Socialmente. Solidariamente.
Da minha mãe ainda tenho, felizmente, o olhar atento, a palavra muitas vezes azeda, a voz de comando a lucidez duma mulher que desenhou caminhos e cruzou lugares de desespero para continuar a ser o orgulho dos netos que tanto ama. Já não vive numa IPSS.
JÁ CÁ NÃO VIVE . Sei que se mudou para um lugar onde não tendo a porta aberta para os que tem menos que ela, e ela teve sempre tem tão pouco ainda é recordada com carinho, alegria e muita saudade.Onde mora, tenho a certeza que teme a noite com medo que não haja um novo amanhecer e sei que gostou de estar cá .
Depois também sei que há muitos anos fez com o meu pai um pacto de fidelidade e amor que de certeza nunca se quebrou e portanto sabe que ele continua a esperá-la numa qualquer porta de uma outra vida qualquer…que será aberta em tempo de nova oportunidade.
A minha casa, a casa que me abriga não é uma exemplar IPSS mas tento adormecer com paz na alma e a certeza que somos capazes de melhorar o mundo quando o nosso lar for ninho, os nossos passos seguirem pelos caminhos da fraternidade e as nossas palavras forem pedras que constroem novos caminhos para um país livre, verdadeiramente livre. E até gosto de mim, gosto de ser este eu.
Entretanto os banqueiros construíram com os políticos do mundo , enormes, moderníssimas e fraudulentas “IPSS” sem alicerces humanitários e sem moral, onde se partilham os valores financeiros feitos com os dinheirinhos de quem trabalha e depois se aplicam em paraísos onde os imperadores adormecem á sombra das bananeiras, rodeados de meninos e meninas que os vão entretendo como faziam os anões das cortes do rei sol .
E EIS-NOS NO TEMPO DO FAZ DE CONTA ONDE SÓ SE FAZEM CONTAS DE SUMIR...SOLIDÁRIAMENTE, ENTRE GENTE FINA...
Como mudou o mundo entre o tempo em que poucos sabiam o significado de democracia ou solidariedade e nem sequer sabíamos escrever Instituição ou Constituição porque eram palavras com muitas sílabas….deram vez e voz a instituições solidárias, belíssimas, bem geridas e de enorme força social que só ainda não foram todas encerradas porque enfim…ainda é cedo…para o ano se calhar acabam quase todas, porque pesam no orçamento do estado…Restam-nos Impérios Porcos construídos com os nossos silêncios e alguns votos onde os ditadores sem rosto, sem escrúpulos e sem nacionalidade retalham os braços daqueles que sonharam por inteiro, a Liberdade!
E...EU ... eu quero apenas continuar a ser eu!
QUERO SER EU...
Não quero ser ave, nem mar
nem nuvem, nem vento,
nem sonho, nem pensamento.
Nem luz pra te alumiar,
Nem lume pra te aquecer…
Nada disso quero ser.
Não quero deixar de ser gente,
nem preciso ser diferente.
Quero apenas um pouco de céu
e quero ser eu
Quero ser livre no meu país,
Quero gritar sou feliz
e quero ser Eu.
Quero ensinar e aprender
Quero semear e colher
Quero partilhar contigo o meu dia
Quero adormecer com alegria
Quero ser livre no meu país
Quero que também sejas feliz
E quero ser Eu!
 
Lourdes dos Anjos