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BAIÃO CANAL - Jornal

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Associação Salgueiro Maia

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D. Celeste Caeiro
Em Lisboa, o dia 25 de abril de 1974 parecia um dia normal, com muito trânsito e muita gente apressada, na rua, logo de manhã. A nota discordante era a excessiva presença de tropa, em atitude de se exercitar para a guerra urbana. Este inusitado panorama prendia a atenção dos transeuntes, que abrandavam o passo e paravam mesmo, para satisfazer a curiosidade.
Seria um exercício? Seria um treino para projetar uma força no estrangeiro? Seria um filme? – perguntavam-se entre si e até abordando os militares, completamente equipados e compenetrados no cumprimento da missão que os levara ali: o derrube do regime ditatorial.
– Ah! Afinal é uma revolução – comentavam incrédulos – A sério?! Eh, malta: é mesmo uma revolução! É uma revolução! Desta vez é que isto vai dar a volta.
E crescia o rumor, espalhando pela cidade o entusiasmo de que, finalmente, estava a acontecer aquilo por que tanto ansiavam há tantos anos e que a Primavera Marcelista parecia ter querido debelar, para, afinal, ter ficado só pelo “parecer”.
Na Rua Braancamp, junto ao Marquês de Pombal, a empregada de mesa do restaurante “Franjinhas” acabava de ser dispensada pelo seu patrão que, avisado sobre a revolução, resolveu muito sensatamente não abrir o estabelecimento, precisamente no dia em que comemorava um ano de abertura e tinha encomendado imensos cravos, vermelhos e brancos, para oferecer à clientela.
Celeste Caeiro saiu do restaurante com uma braçada de flores, sem saber muito bem o que lhes faria; mas o frémito da alegria popular não sugeria o regresso a casa, antes o participar no que quer que estava a acontecer. Tantos carros com tanta tropa! Tantos mirones vidrados nas fardas! Armas a sério, empunhadas por homens a sério. Movimento. Alegria. Entusiasmo. Partilha.
– Senhora! Por acaso tem um cigarro que me dê? – atirou-lhe um soldado, para fazer conversa.
– Não. Não fumo – e quase corou, pesarosa de não poder dar algo de si a quem se estava a dar em pleno, ao país, ao povo, sem nada pedir… ou talvez apenas um cigarro, para sedar a tensão do momento, da incerteza que envolvia a aventura de mudar o regime, de conquistar a liberdade.
De repente, por instinto, por gratidão, por amor, Celeste separou um cravo do molho e estendeu-o ao soldado. O quê? Em 1974? Uma mulher oferece uma flor a um homem, à frente de toda a gente? E o homem aceita? Como é que, com a Revolução ainda mal começada, estes dois já perceberam que vem aí a liberdade e a igualdade de género? A vida parece um romance, não é?
O soldado colocou o cravo no cano da sua espingarda, inutilizando o seu poder de tiro, mas, ao mesmo tempo, demonstrando a vontade de não a disparar; e o gesto foi repetido pelos outros soldados, até onde o molho de cravos da Celeste pôde chegar.
São gestos que ninguém planeia, mas que vivem cá dentro da gente e explodem de repente sem bem se saber porquê, como fogo de artifício que se espalha no ar e ilumina a noite. Também as floristas do Rossio, sabendo do caso, aderiram à loucura de distribuir cravos por soldados e populares sem cuidar do destino da sua fazenda, ou cuidando bem que estavam vivendo momentos de euforia irrepetíveis que bem as compensava da perda. É assim o povo em ação! Generoso, responsável, valente, altruísta,
Chovia gente de todo o lado, escorrendo de enxurrada pelas ruas estreitas do Carmo. Era impensável promover alguma ação militar com fogo real no meio da multidão; mas a multidão era a mais adequada arma para derrubar o regime. Nem mesmo a estupidez dos sicários da polícia política conseguiu manchar a alvura dos acontecimentos. O povo saiu à rua. Veio aprovar e agradecer a Revolução dos Cravos. Ninguém tinha dúvidas de que começara ali uma nova era. Respirava-se fraternidade, liberdade, civismo, amor. Que bom seria distribuir medalhas a este povo, como se distribuíram os cravos.
Mas se não é possível condecorar todo o povo, é sempre possível condecorar um símbolo desse povo e da sua entrega generosa à revolução, como argumento decisivo que a fez triunfar; e se há uma pessoa que pode simbolizar a multidão, na sua simplicidade, humildade, lhaneza é, por certo a D. Celeste Caeiro, que protagonizou o gesto que deu nome à revolução, que deu ao país aquilo que podia dar, como fizeram os heróis desse dia, uns que já receberam o justo galardão, outros que ainda esperam por um sinal do nosso reconhecimento. O tempo urge. Celeste nasceu em 1934.
De: Fernando Frederico
Associado ASM