Paulo Esperança | O EMBUSTE EM ESCADA
Há anos valentes, durante um dos seus passeios higiénicos, um amigo do Presidente da Junta deu-se conta que nos arrabaldes das explorações agrícolas havia seres humanos amontoados em coisas parecida com casas.
Quase à noite, na tasca local falou ao Presidente da Junta do que vira.
O Presidente da Junta disse-lhe que a situação já lhe tinha chegado aos ouvidos (não costumava ir passear para aquelas zonas) e que ia transmitir à Câmara Municipal …quando tivesse tempo.
O Presidente da Câmara Municipal recebeu a notificação do Presidente da Junta e quando teve tempo remeteu-a, com o respectivo despacho, para o vereador da Protecção Civil e da Segurança Social.
Estes…quando tiveram tempo… falaram ao telefone com alguns empresários do sector agrícola da região, leram uns jornais e reportaram as conclusões em relatório formal.
O Presidente da Câmara…quando teve tempo … perante esses relatórios e cumprindo as normas do poder hierárquico enviou-os para o Secretário de Estado da Administração Interna e da Segurança Social.
Quando tiveram tempo ambos analisaram esses relatórios remetendo-os aos Ministros da tutela devido à sensibilidade do assunto.
Os Ministros, quando tiveram tempo, pediram aos seus assessores para produzirem um parecer jurídico o que aconteceu quando os assessores… tiveram tempo.
Recebidos os pareceres, os Ministros, quando tiveram tempo, mandaram enviá-los para o SEF, GNR, ARS da região, Centro de Segurança Social, Protecção Civil e claro, à autarquia local.
Entretanto, a cultura intensiva devastadora de solos e água na região, o fechar de olhos ao tráfico de seres humano e à sua miserável exploração, as suas condições insalubres de “habitação” continuaram olimpicamente à espera de mais relatórios …quando houvesse tempo.
Mas o Covid é traiçoeiro e pregou uma finta ao tempo.
Casos e casos que, mais uma vez, atacaram uma população sofrida e desprezada.
Finalmente houve tempo! Polícia, Câmara Municipal, Junta de Freguesia, Protecção Civil, Administração Interna, GNR, DGS, Segurança Social, Governo, Assembleia da República, etc, puseram-se em campo e exclamaram “aqui- d´el-rei”!
Vai daí toca de atirar culpas de uns para os outros. No final, como dizia José Mário Branco no seu “FMI”, “a culpa é de todos, não é? Afinal a culpa é de todos e não é de ninguém, não é filho?”
Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar canta Francisco Fanhais num belíssimo poema – “Cantata da Paz” – de Sophia de Mello Breyner Andresen. Aqui ninguém viu, ninguém ouviu, ninguém leu.
É a democracia representativa a funcionar, dizem-nos.
Até pode ser, mas os resultados, neste caso, mostram que quem diz que representa, de facto, não teve tempo para representar quem anda nos labirintos obscuros da vida.
Experimentem a democracia directa. Vão ver que a cambada de facínoras que escraviza estes seres humano deixaria de se considerar impune e talvez não tivéssemos vergonha do que estamos a fazer a cidadãos que andam sistematicamente à procura de serem um pouco menos infelizes.
Porto, 6 de Maio de 2021
Paulo Esperança