O problema para o Marques Pinto, naquela tarde outonal, era a crónica. Deixara esgotar o prazo de entrega. Agora, a edição do dia de O Primeiro de Janeiro estava à espera do texto. Ele, ao contrário de outras vezes em que isso lhe sucedera, estava seco, sem ideias. Tinha de arranjar um tema o mais depressa possível.
Assuntos não faltavam a este jornalista de boa memória, profissional completo, de escrita rápida, profícua, e um dos fundadores do CFJ, cooperativa de formação de jornalistas. Mas faltava-lhe tempo para, na escrita da crónica, poder jogar com as palavras até conseguir driblar a censura. Decidiu-se por uma lírico-vegetal, expressão usada na gíria para nomear crónicas inócuas, quase sempre à volta dos encantos da natureza, de flores, pássaros, fios de água…. Então, o detentor da carteira profissional nº 11, o escritor de um livro policial, o criador da revista Medalha, com a Numismática por tema exclusivo, saiu para a rua à procura de inspiração.
De olhos atentos e ouvidos alerta, deambulou pela baixa portuense, na expectativa de ver uma cena, de ouvir uma ponta de conversa a que se pudesse agarrar, lembro-me de assim ele me dizer.
Tanto procurou que encontrou. Foi na Praça Carlos Alberto. Viu um operário que, em contraste com a pressa dos transeuntes, especado, olhava fascinado para a copa das árvores daquela praceta ajardinada. Casaco e calças de cotim, boina na cabeça, lancheira na mão, grosso guarda-chuva pendurado na gola do casaco, este o modo como o Marques Pinto me descreveu o homem que não tirava os olhos das alturas.
A cena tocou o jornalista, puxou-o para o lado da ternura. Havia ali, sem dúvida, motivo para uma crónica lirico-vegetal. Entretanto, o operário mantinha-se de nariz apontado ao céu, a observar uma chusma de pardais ruidosos que se preparavam para a pernoita. Aproximei-me, meti conversa, e ele nada, nem sequer me olhou, sempre de olhos postos na passarada.
Marques Pinto, sensibilizado, continuou a falar-lhe. Partilhava com aquele desconhecido a emoção causada por aquele quadro que a natureza ali colocara diante dos dois, ambos, certamente, a ferver de ternura perante o esvoaçar de tanto passarinho inocente…
O homem do fato de cotim acabou finalmente por reagir. Voltou-se para o Marques Pinto, disse-lhe: Era mas é uma mexa de enxofre… botá-los todos abaixo… carago...Que rica arrozada no domingo...
Jaime Froufe Andrade: Jornalista, escritor