O Inferno é canja, duro é aguentar o Paraíso | Natércia Teixeira.
Observava, com uma atenção forçada, o gelo picado dissolver-se lentamente no copo… à procura de alguma inspiração.
No palato, o gosto fresco da hortelã…entre os dentes, cristais de açúcar mascavado que ao dissolverem-se aveludavam o gosto ácido do limão e o travo amargo do rum.
Precisava escrever.
A imagem de fundo do portátil aberto em cima da mesa devolvia-me uma realidade que precisava aceitar.
Pensei no meu amigo.
Precisava de escrever…
Mas não sobre isso…não hoje e não já.
Raios de sol, filtrados pelas folhas das tílias que cresciam frondosas junto ao rio, incidiam na mistura verde menta depositada à minha frente…a mesma cor do olhar da minha saudade.
Precisava escrever.
Olhei em redor…Agosto e a esplanada vazia, até a brisa desconfortável estava fora do contexto.
Duas mulheres surgiram no meu angulo de visão e apesar da distância considerável que ainda nos separava ouvia distintamente a voz de uma delas, o que me fazia antever o término do propósito, já que ideias nem as chegara a ter.
Aproximaram-se…uma ao comando, qual militar a dar instruções ao soldado raso, provavelmente surdo, instou a companheira a ocupar a mesa à minha frente.
- “Vamos! Senta-te aí!”
Maldisse a minha sorte…mais uma distração.
Todas as mesas desocupadas, um vírus que para além da saúde nos compromete a criatividade e aquelas duas almas não encontram melhor sítio para se instalar que “coladas” a mim, numa esplanada vazia.
Suspiro instintivamente…melhor tentar encontrar o génio noutras paragens.
Fechei o computador e continuei, indiscreta a escutar o monologo do duo:
- “Deixa lá…isto é um inferno…o tempo uma porcaria…e isto do Covid é outra…tenho uma amiga que é médica, o marido é juiz…cheios de dinheiro, os pais riquíssimos, com uma grande moradia na Foz…os filhos formados…a rapariga é engenheira, muito bem na vida…o rapaz é qualquer coisa das artes…sabes como é esse pessoal das artes…mete-se no que não deve…arranjou uma qualquer com um filho…um desgosto…não bastava o marido que se deixou levar pela sopeira… uma vergonha…de tão boas famílias…riquíssimo…com a sopeira!! a minha amiga ficou de rastos…tão boa rapariga…e bonita…um grande desgosto…agora desleixou-se…está gordíssima…somos muito amigas…
…gosto desse vestido branco…tenho um…não, dois…já nem sei bem…um é assim parecido…da Massimo Dutti…ou Cortefiel, não me lembro…o tecido desse parece jeitozinho…foi caro?...temos de ir às compras a ver se te animas…e não te metas noutra…sempre o cão…sempre o cão…nem podias sair para lado nenhum…
…isto aqui está uma tristeza…parece a minha sala de jantar à noite…vazia…
…o meu…outro que se deixou levar.”
Pausa.
Choro.
Silencio.
Tomei folego, mais exausta do que se tivesse sido eu a debitar o discurso e olhei com empatia a mulher que até ali se mantivera em absoluto silencio.
Encontrou nas lágrimas da companheira uma deixa para o quebrar:
- “…parece-me…”
O general sem patente, não a deixou terminar…num evidente desperdício de decibéis e sem cerimónia cortou-lhe a palavra:
- “…escuta…vamos mas é embora que aqui não se aprende nada…isto até pode ser o paraíso, mas é uma pasmaceira…não se vê ninguém…tu, muda como um rato por causa do cão…não te metas noutra…arranja mas é um namorado rico!”
Fiquei a observa-las afastarem-se.
Abri novamente o computador que me devolveu a imagem do meu cão.
Precisava escrever.
Precisava escrever sobre ele, mas não agora.
Hoje, escrevo sobre todos os seres maravilhosos capazes de falar sem proferir uma palavra;
Capazes de escutar em absoluto silencio.
Aqueles, que têm a grandeza e generosidade de oferecer pérolas mesmo a porcos.
Com eles, o inferno é canja, duro é com os outros, aguentar o paraíso.