Com quinze anos eu era uma menina feliz, responsável e respeitada.Era a menina mais nova do senhor ARMINDO e da ADELAIDINHA.Vivia na casa onde nasci , na cidade do Porto e acreditava que o mundo era a minha rua ou apenas mais uma avenida ou um jardim.Preparava a minha entrada para a escola do magistério do Porto e ansiava que o sábado chegasse para , no fim das aulas, correr pela rua de Pinto Bessa até á estação de Campanhã, para apanhar a automotora das 16h que me levava até Estarreja .
Depois nem olhava para trás com medo que a minha mãe se arrependesse da autorização dada e o comboio partisse sem mim. Ao avistar os enormes tanques do "Amoníaco", pegava no saco, apertava-o contra o peito para que o coração não saltasse com o comboio em andamento e colava o nariz no vidro até poder abrir a porta mágica da carruagem.
Da estação de Estarreja até Salreu era uma caminhada em passo largo para aproveitar o tempo de liberdade que a minha avó me dava.Uma liberdade condicional mas tão saborosa que começava logo no tirar os sapatos e ser cachopa da terra. Beber um púcaro de leite diretamente das tetas da vaca com direito a bigode branco e uma sonora gargalhada da minha madrinha.Comer sopas de vinho muito docinhas, dormir com a minha avó e correr pelo "aido" como um potro selvagem que quer agarrar o vento.
Depois, tudo terminava quando , no domingo, ouvia o carro do meu pai parar em frente da porta e eu voltava ser a menina com pulseira eletrónica que se devia de comportar como uma estudante e ter por isso muito mais responsabilidade em todos seus atos.E lá encontrava sempre os olhos cheios de azul, de cumplicidade, de silêncio, de ternura, da minha avó nos momentos mais difíceis. Quinze anos de alegria e de esperança num futuro menos escravo que os meus pais me ajudaram a construir .
No tempo dos medos e das palavras por dizer, tudo era, à minha volta, um jardim que havia de florir em cada dia do ano.
Com trinta anos, era uma mulher feliz, com um filho de olhos cheios de luz e uma Pátria renascida para a liberdade.Trabalhava numa zona muito difícil da cidade do Porto e acreditava que o futuro estava nos homens e nas mulheres que eu preparava para viverem sem algemas , com obrigações e direitos escritos nos muros da cidade e assinados com todas as letras de Verdade e Paz.
Já não era a menina vestida de sonho mas a mãe que trazia consigo a palavra que valia como uma escritura feita no tabelião e os braços prontos para pegar nas armas que tinha e lutar por um país onde as cédulas pessoais das crianças não tivessem aquela frase que magoava a ouvir e a ler: PAI INCÓGNITO.
Lutei por um país que não tivesse que ver partir os seus jovens para uma guerra por explicar e depois receber alguns deles numa caixa de pinho.Lutei contra a droga, a violência , qualquer que fosse, contra o trabalho infantil, contra o poder que instalado na capital, fazia do Norte um gueto de escravos , saloios e analfabetos. LUTEI, LUTEI, LUTEI ..
Aos quarenta e cinco anos era avó. Segurei nos braços aquele pedaço de mim e jurei que, um dia, ele teria tantas saudades minhas como eu ainda tinha da minha avó de olhos azuis e alma branquinha. Sei que consegui quase todas as metas que me propus atingir, até essa...de ser uma avó de cumplicidades e saudades.
Hoje, depois de ultrapassar os setenta, com muito caruncho e muita vontade de viver e morrer lúcida, continuo , como aos 15 anos, a ser responsável, como aos 30 a ser feliz e aos 45 a abrir os braços para os outros netos que entretanto foram chegando.
Mas, porque despedaçaram o meu país, roubaram o futuro dos jovens, rasgaram o lençol remendado dos velhos, destruíram as palavras que com tanto sacrifício escrevemos nos caminhos de Portugal, hoje, começo a temer que as creches dos meninos e os lares que acolhem e mimam as velhas raízes das nossa vidas, não possam continuar de pé.Temo que o meu filho não tenha direito a uma reforma no fim da sua vida de trabalho, temo que os novos continuem a partir e os velhos fiquem sós e sem lenços para acenar na hora da partida.
Temo que a guerra financeira que vivemos nos sufoque sem dó nem piedade e nem sequer nos permita um último suspiro.
Resta-me a alegria de ainda ter forças para agradecer aos que , respeitam os nossos velhos, dando-lhes colo e sarando as feridas que as chicotadas sucessivas da vida lhes fizeram.
Não quero ser um fardo nas costas de quem amo, tenho direito a escolher o meu último espaço para viver com dignidade.
Confiei o dinheiro que me foram exigindo ao longo da minha carreira profissional, nas mãos do estado, cumpri com todos os meus deveres, tenho por isso, direitos
Rejeito esmolas.
Exijo que cumpram o contrato que comigo fizeram no ano de 1968.
Temo o futuro, o meu, o vosso,, dos jovens que hoje contam 15 anos e que falam apenas das banalidades com que fazem o seu modus vivendi, dos que contam 30 e ainda não sabem com quantas tábuas se constrói uma canoa, dos que tem 45 e estão na vida sem conseguir viver e de todos os outros que nasceram livres e hoje estão algemados ao poder financeiro que sufoca os povos, e comanda os dias amargos dos portugueses.
Temo que este nobre povo tenha que voltar a pedir esmola para dar a sopa aos mais frágeis.
ONTEM- A minha geração ainda viveu, sonhou, provou o sabor de alguma felicidade.
Os outros, onde irão cair? Talvez se fiquem pela escadaria de S.Bento ou na porta de qualquer igreja com uma lata na mão, que lhes sirva de malga .
HOJE - É TEMPO DOS ZÉS, DOS SILVAS , DOS LIMAS, DOS TONES E COMANDITA ABRIREM O MANTO E OFERECEREM OS ESPINHOS DAS ROSAS QUE PROMETERAM AOS NOVOS MENDIGOS QUE FABRICARAM .
AMANHÃ- TALVEZ AS NOVAS GERAÇÕES TENHAM DE REPETIR O GESTO DAS VELHAS GENTES QUE REPARTIAM CADA SARDINHA POR TRÊS NACOS DE BROA , PARA "CALAR" TRÊS BOCAS...
Lourdes dos Anjos
É professora aposentada, do Porto, vive no Porto, escreve sobre o Porto e ama o Porto como poucos! Quando declama poesia, faz "chorar as pedras". Aceitou colaborar com o Baião Canal | Jornal , à moda do Porto, pois claro!
Da sua obra destacamos o livro com o título "Nobre Povo".
Os olhares e o sentir destes dois portuenses, Maria de Lourdes dos Anjos a autora e o fotógrafo António Amen, deram origem a este precioso trabalho documental da história da Cidade do Porto. Testemunho de uma época , Nobre Povo traça o percurso singular, tão surpreendente como inspirador , de ambientes vividos no Porto , ao longo de várias gerações e que marcaram de modo indelével o sentir do Porto de Outros Tempos, a nobreza de personagens como a Drª Adelaide Estrada ilustre discípula de Abel Salazar e cúmplice de ideais de Humberto Delgado, Eugénio de Andrade, o génio do Porto, o Dr. Albino Aroso porque poucas mulheres sabem o muito que fez por elas antes de terem nascido, a polícia judiciária e finalmente o Nobre Povo nos retratos de Emilinha dos jornais e da Miquinhas Esgazeada.