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BAIÃO CANAL - Jornal

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Histórias avulso | Jaime Froufe Andrade | O homem do fato de cotim

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O problema para o Marques Pinto, naquela tarde outonal, era a crónica. Deixara esgotar o prazo de entrega. Agora, a edição do dia de O Primeiro de Janeiro estava à espera do texto. Ele, ao contrário de outras vezes em que isso lhe sucedera, estava seco, sem ideias. Tinha de arranjar um tema o mais depressa possível. 

 

Assuntos não faltavam a este jornalista de boa memória, profissional completo, de escrita rápida, profícua, e um dos fundadores do CFJ, cooperativa de formação de jornalistas. Mas faltava-lhe tempo para, na escrita da crónica, poder jogar com as palavras até conseguir driblar a censura. Decidiu-se por uma lírico-vegetal, expressão usada na gíria para nomear crónicas inócuas, quase sempre à volta dos encantos da natureza, de flores, pássaros, fios de água…. Então, o detentor da carteira profissional nº 11, o escritor de um livro policial, o criador da revista Medalha, com a Numismática por tema exclusivo, saiu para a rua à procura de inspiração.

 

De olhos atentos e ouvidos alerta, deambulou pela baixa portuense, na expectativa de ver uma cena, de ouvir uma ponta de conversa a que se pudesse agarrar, lembro-me de assim ele me dizer.

 

Tanto procurou que encontrou. Foi na Praça Carlos Alberto. Viu um operário que, em contraste com a pressa dos transeuntes, especado, olhava fascinado para a copa das árvores daquela praceta ajardinada. Casaco e calças de cotim, boina na cabeça, lancheira na mão, grosso guarda-chuva pendurado na gola do casaco, este o modo como o Marques Pinto me descreveu o homem que não tirava os olhos das alturas. 

 

A cena tocou o jornalista, puxou-o para o lado da ternura. Havia ali, sem dúvida, motivo para uma crónica lirico-vegetal. Entretanto, o operário mantinha-se de nariz apontado ao céu, a observar uma chusma de pardais ruidosos que se preparavam para a pernoita. Aproximei-me, meti conversa, e ele nada, nem sequer me olhou, sempre de olhos postos na passarada. 

 

Marques Pinto, sensibilizado, continuou a falar-lhe. Partilhava com aquele desconhecido a emoção causada por aquele quadro que a natureza ali colocara diante dos dois, ambos, certamente, a ferver de ternura perante o esvoaçar de tanto passarinho inocente…

 

O homem do fato de cotim acabou finalmente por reagir. Voltou-se para o Marques Pinto, disse-lhe: Era mas é uma mexa de enxofre… botá-los todos abaixo… carago...Que rica arrozada no domingo... 

Jaime Froufe Andrade: Jornalista, escritor

OBLIQUIDADES (6) | Jaime Milheiro

OBLIQUIDADES (6)                                                                                        JAIME MILHEIRO

  

Jaime Milheiro Eterno aprendiz do que desejava  ser, inúmeras vezes pensei que teria  razão antes do tempo, numa presunção que aparentemente me iluminava.

Já em miúdo perceberia  bem e depressa. Antecipava  situações e problemas  sem nada   resolver, numa atitude  difícil de explicar e de estancar mas  que  me seria  útil   por certo, porque  me diminuiria  o medo  do desconhecido que no subsolo lhe jazia.

A questão do produzido nem se punha…

                                              

                                               (Sentindo-me obviamente

                                               o melhorzinho da minha rua…)

 

até me dar conta que nas agendas de crescimento de toda a gente isso acontece...

e que todas as ruas são estreitas, curtas e sinuosas, mesmo as auto estradas a caminho do oriente.

 

Sem vacina, sem remédio, sem farmácia,   todos os seres humanos nessa mesma argúcia se situam e nessa mesma infantilidade se  enaltecem,   comparando-se com as peças do vizinho que não conhecem nem possuem, mas que desejam conhecer e possuir.

Devemos felicitá-los por isso, ainda que múltiplos  caprichos e contorcionismos possam sobrepor-se...

 

                                               (Vi há dias um senhor com gravata

                                                 na fila da vacina...)

 

e ocasionais veleidades  se  recomendem ou apascentem.

 

Todos seremos únicos e brilhantes até deixar de o ser (a data da saída é que pode variar), salvo em circunstâncias disruptivas ou   ladainhas depressivas…

 

                                               (Os outros serão sempre favorecidos,

                                               só nós é que mereceríamos...

                                               “o meu filho  na escola  não aprende

                                               porque a professora não presta”...)

 

carimbando a natural competitividade da espécie. 

 

Na visão geral das coisas, nos caminhos ascensionais, nos patamares sociológicos, nos horizontes  profissionais,   inúmeras vezes  isso também  me aconteceu.

Como toda a gente senti que a minha estimadíssima intenção  de melhoria pessoa e colectiva irremediavelmente se  confinava nas morosidades programadas, nas resistências à mudança, nas  manobras subterrâneas, nas preguiças sustentadas...

 

                                               (Os ingratos não quereriam nem perceberiam,

                                                o balanço  ficaria para  mais tarde… )      

 

alegremente ofuscando a minha própria ingenuidade.

 

Significa isto que todos os seres humanos se embrulham na ilusão do significativo, mesmo  que não façam coisa nenhuma. E que jamais  se detêm, mesmo   coxeando na bengala do adiamento.

Será impossível bloquear-lhe os seus   sentimentos de percurso e  as suas  aspirações de futuro...

 

                                               (Apesar dos discursos improváveis                                                 

                                               e das circunstâncias irrealizáveis… )

                                                            

assentes na incontornável misteriosidade  interna que os promove.

 

Pela minha parte, tantas vezes  isso me  aconteceu que sem remédio foragi.

Fui pescar camarões na Lapónia e pouco  depois já me encontrava na ilha de Páscoa  a grelhar gambuzinos no pão de ló da madrinha, para mais tarde  desfolhar rabanadas  no Natal da África do Sul, sempre à maneira de quem espera  as sopas de burro cansado na madrugada que há-de vir.

Tudo  isso enquanto retirava catotas   do nariz e as  enrolava nos dedos, até que a minha avó chegasse e porcalhão me chamasse, querendo com isto acentuar que...

 

                                                (Haverá sempre  posturas inacabadas

                                                                trajectos por definir

                                                               indecisões retomadas

                                                               fantasias por assumir…)

 

e que ninguém acaba antes de acabar, mesmo que se obrigue a bisbilhotar ornitorrincos entre os  jacarés das Berlengas.

Jaime Milheiro